Para citar esse texto:
MARQUES, Luany; TAVARES, Poliana. TERRA À VISTA: A MANUTENÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CAMPO COMO FERRAMENTA COLONIAL NO BRASIL. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 5 jul 2022. Disponível em: https://decoloniais.com/terra-a-vista-a-manutencao-da-violencia-no-campo-como-ferramenta-colonial-no-brasil/ Acesso em: *inserir data*
Os resquícios da colonização e do imperialismo estão presentes na formação e desenvolvimento cultural, social, político, econômico e consequentemente estrutural do Brasil. Partindo dessa ideia e relacionando-a com casos de violência contra povos do campo e comunidades tradicionais, que são publicizados tanto em território nacional quanto internacionalmente, propomos estabelecer uma relação entre os conflitos agrários no país e o uso da violência no campo como ferramenta colonial de manutenção de poder.
A princípio, é necessário compreender a história da formação territorial brasileira a partir da invasão, da expansão imperial e da manutenção do poder colonial mediante o uso da força consolidando cenários de violência e escravidão. Os assassinatos, ameaças à integridade física e psicológica, além das tentativas de intimidação dos povos tradicionais e camponeses, são frutos da falta de políticas públicas governamentais que promovam o acesso à reforma agrária, contribuindo para a manutenção de latifúndios e atividades ilegais como a grilagem, o garimpo, o narcogarimpo, o contrabando de minérios e o desmatamento desenfreado.
Os territórios e territorialidades dos povos tradicionais e camponeses são violentados não somente na forma física com a invasão, ameaças e assassinatos, mas também de forma estrutural, já que a própria organização do Estado nacional negligencia as suas reivindicações, sua história, modos de vida e sobrevivência, legitimando e legalizando atividades que ferem os direitos fundamentais da população em nome da globalização e do capitalismo predatório imposto pelo modo de desenvolvimento neoliberal. Convém, então, analisar, refletir e questionar essas estruturas.
Conflitos por terra no Brasil: uma questão histórica
A estrutura fundiária brasileira é historicamente marcada pela hierarquização e desigualdade. Considerando que o Brasil nasce da invasão territorial e que o sucesso dos colonos dependia necessariamente do controle da propriedade e uso da terra, a violência e a desigualdade estão na raiz das relações fundiárias. Ante-coloniais, as relações cultivadas pelos povos originários da região com o território habitado não se resumiam ao reconhecimento de propriedade privada delimitada por fronteiras contratualmente acordadas -resguardando as disputas de poder-, como passa a se impor a partir do avanço da colonização portuguesa. Esse movimento de disputa prevê, além do confronto físico, a instituição formal e simbólica da colonialidade no uso da terra nas relações políticas e burocráticas que se erguiam.
No período colonial, por volta do século XVI, a propriedade de terras era concedida pela coroa portuguesa aos colonos europeus, deslegitimando o pertencimento histórico, sociogeográfico e cosmológico indígena e incentivando o latifúndio. Nos anos 1850 com a Lei n° 601/1850, ou a chamada “Lei de Terras”, institucionalizou-se a disputa entre europeus e indígenas pelo uso e monetarização da terra, que seria utilizada como meio de produção e futuramente de comercialização formal. De acordo com essa lei, os latifúndios concedidos pela Coroa seriam mantidos com seus respectivos donos (europeus) e a única forma de aquisição de terras seria pela compra.
Assim, exclui-se a possibilidade de indígenas e escravizados serem proprietários e, principalmente, a existência formal de relações não-coloniais de pertencimento ao território que não de pertencimento do território à propriedade privada. Ainda sob essa perspectiva, considerando que a Lei Áurea foi assinada em 1888, os escravizados foram libertos sem nenhuma garantia de sustento, não restando outra alternativa senão a mão de obra barata para os senhores donos de terras, aprofundando as desigualdades socioeconômicas e geoespaciais.
A questão agrária nos moldes de desigualdade e violência engendrados pelo colonialismo se mantém nos dias atuais, assim como as disputas que ela incita. Reflete-se, por exemplo, na falta de políticas públicas de democratização do acesso à terra agricultável e é associada a inúmeros tipos de violência, com casos alarmantes e recorrentes de assassinatos de camponeses, povos tradicionais e suas lideranças, além de ativistas e defensores dos direitos agrários. Fernandes (2001, p. 23) define a questão agrária como o “[…] movimento do conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção”.
Nesse sentido, o crescimento exponencial de produção do agronegócio impulsionado pelo modelo de produção capitalista só é possível por seu avanço sobre territórios dos povos do campo, ribeirinhos e originários, colocando em risco suas vidas, modos de sobrevivência e sua dignidade. De acordo com o Atlas da Violência no Campo no Brasil produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) produzido e publicado em 2020, são inúmeros fatores associados aos conflitos no meio rural, dentre os quais cita-se:
[…] os altos índices de concentração fundiária, a exploração intensiva de recursos naturais e os conflitos envolvendo a disputa pela posse e titularidade da terra. Ou ainda questões como a localização em áreas fronteiriças, o desenvolvimento de atividades ilícitas, como tráfico de entorpecentes, roubo e contrabando de mercadorias, assim como a presença de grandes empreendimentos e mudanças bruscas nos fluxos migratórios de uma determinada região (IPEA, 2020, p. 11).
Percebe-se que são inúmeras questões potencializadoras da violência no campo. Lopes e Santos (2021, p. 109) também adicionam a essa discussão os seguintes temas: a luta pela água, pela demarcação territorial, contra o desmatamento, a expansão da agropecuária e do agronegócio. Os crescentes casos de violência e crimes contra lideranças ambientais fazem refletir sobre a influência das políticas governamentais pró-agronegócio e mineração na violação dos direitos fundamentais.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2016) citada por Lopes e Santos (2020) define como conflito por terra a soma de ocorrências referentes a violência contra a ocupação e a posse (expulsão, despejo, ameaças de expulsão ou de despejo, tentativas de expulsão, bens destruídos, pistolagem), ou contra a pessoa (assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisão, tortura, etc).
De acordo com os dados divulgados pela página Massacres no Campo (organizada pela CPT) no relatório sobre conflitos do campo, no ano de 2010 foram contabilizados 638 conflitos, 57% destes envolvendo posseiros e comunidades tradicionais (indígenas, extrativistas, quilombolas etc.) (CPT, 2022). A maior parte desses conflitos foram causados pela ligação com grandes projetos, tais como barragens, ferrovias, rodovias, parques eólicos e também a mineração (Manfredo, 2011).
O número de conflitos no campo esteve entre os anos de 2012 a 2015 por volta de 820, sofrendo aumento considerável no ano de 2016, onde foram registrados 1.112, chegando até 1.576 no ano de 2020. No ano de 2021, foram contabilizados 1.242 conflitos, dos quais foram registrados 35 assassinatos. Destes, 28 foram em estados da Amazônia legal, decorrentes da ferocidade da grilagem e do latifúndio sob proteção do setor ruralista do Estado brasileiro. 52% dos conflitos por terra no país são registrados na Amazônia (CPT, 2022).
Além disso, ainda conforme divulgado pela CPT (2022), os cinco primeiros estados com maiores ocorrências de conflitos são: Pará, Maranhão, Bahia, Mato Grosso e Rondônia. Estes fazem parte da Amazônia Legal e estão localizados na região Norte do país, na qual tem-se aumentado o desmatamento, a produção de soja e o avanço da fronteira agrícola. Nesse sentido,
[…] a violência segue o ritmo do desmatamento, da pastagem e da soja, sempre rumo ao norte, em uma verdadeira cruzada de saque (desmatamento e minério), apropriação ilícita de terras públicas (grilagem) e violência física contra povos tradicionais, em seus territórios ocupados (expulsão, pistolagem e assassinatos) (CPT, Assessoria de Comunicação, 2022).
Além das motivações já citadas ligadas a grandes projetos, também reitera-se os interesses do setor privado, dentre os quais, de acordo com o site oficial da Comissão Pastoral da Terra (2022), podem ser observados por meio do setor de mineração, agronegócio, madeireiras, além da construção de hidrelétricas, entre outras ações. As ações de empresários com apoio governamental causam catastróficos danos ambientais e à saúde das populações do campo. As denúncias sobre as ilegalidades articuladas por movimentos sociais, representados por ativistas, lideranças e pela própria população, muitas vezes são invisibilizadas, arquivadas e os autores são passíveis de represálias e ameaças.
O garimpo ilegal e as violações dos direitos em terras indígenas
A superexploração de terras e biomas no Brasil, protegidos pelos povos originários e camponeses, tem levado a morte às culturas que mais preservam a vida nos territórios invadidos desde a colonização. Pensando o extrativismo na América como origem da modernidade, o pensador Horacio Machado Aráoz enfatiza o lugar da atividade minerária no imaginário e na política moderna/colonial de uso e controle capitalista dos territórios e corpos colonizados.
A empreitada colonial que invadiu os territórios que hoje conhecemos como América Latina se deu em meio à corrida pelo acesso a ouro e prata em abundância, que orientava as políticas econômicas de desenvolvimento comercial e da própria sociedade capitalista moderna, fazendo da exploração mineral a certidão de batismo do sistema-mundo capitalista moderno-colonial (Aráoz, 2020), no qual o “Novo Mundo” é inscrito a partir da superexploração da natureza e do trabalho.
Ainda de acordo com Aráoz (2020), a colonização se valeu das narrativas de progresso da humanidade e civilização para a subjugação dos corpos e culturas não-europeias, a mercantilização das formas de vida não-humanas -uma das faces capitalistas da expansão colonial- foi amplamente defendida e legitimada como progresso material, econômico e social modernos. Defender o entendimento, o uso e o pertencimento à natureza em termos contrários ao capitalismo se tornam, a partir de 1492, bandeiras contra o progresso na lógica moderna/colonial, combatidas a partir da violência física, simbólica, cultural, institucional e intelectual, em nome da exploração de recursos ambientais.
A mineração na América Latina, sua história, seus avatares, foram desde cedo definidos pela metáfora das veias abertas. Seus impactos bem podem figurar como a passagem de um furacão; um furacão chamado “progresso”. A noção ilustrada, moderna, científica, positiva de progresso, convertido em religião -religião colonial-, é o que ainda a essa altura, no século XXI, permite vislumbrar, mais que as razões, as emoções que mobilizam essa dinâmica sacrificial da mineração transnacional, propriamente colonial. A fé na promessa do desenvolvimento infinito. (…) O brilho do ouro mostra de maneira ofuscante a sangrenta fórmula da “civilização”, dessa civilização doente. Cega todos os órgãos sensoriais vitais e cria corpos insensíveis, acostumados à violência -esta, sim, potencialmente infinita (Aráoz, 2020).
O entendimento da exploração minerária como progresso ainda subjaz às decisões políticas e econômicas no Brasil, enquanto atinge continuamente populações inteiras, submetendo-as a constantes violências. As atividades do garimpo receberam uma série de movimentações favoráveis do Governo Federal nos últimos anos, incluindo decretos e projetos de leis convenientes à exploração das terras preservadas.
O recente decreto Nº 10.966, de 11 de fevereiro de 2022, do Governo Federal, disfarçado pelo nome de “mineração artesanal“, na verdade causa um grave impacto socioambiental nas regiões de exploração, na medida em que desmata, polui e contamina os rios das áreas garimpadas, explora o trabalho das populações que se submetem a condições análogas à escravidão, interessadas no trabalho em um cenário de acentuada desigualdade socioeconômica.
O Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) apontou que o decreto assinado prioriza os interesses do atual governo e dos empresários envolvidos no lobby do garimpo. Para Ruben Siqueira, coordenador da CPT, em entrevista para o site Agência Brasil (2020), há certa facilitação governamental para que os projetos sejam desenvolvidos. Explica que, em um mundo globalizado,
[…] a ideologia e a política estratégica da globalização é o neoliberalismo que hoje alguns já chamam de hiperliberalismo, que é quando se reduz o espaço, se submete mais ainda o Estado à pressão do capital, seja produtivo, seja improdutivo, que é o hegemônico, financeiro, mas que se realiza sobre os negócios reais, os bens reais. Isso valoriza os papéis no mercado financeiro, e a desregulamentação, a facilitação desses negócios. Outros também chamam isso de necropolítica, que é quando se produz a morte e ela é vantajosa para certos setores econômicos cada vez mais concentrados no capital (Agência Brasil, 2020).
A noção de desenvolvimento pautada nos modos de produção neoliberais em convergência com os interesses das multinacionais e velado pelo Estado, causa cada vez mais o aprofundamento das desigualdades, que segue sendo reforçada pela globalização contemporânea.
Por globalização, entende-se o processo de interação entre os países a nível global em diversas áreas tais como bens, serviços, capital e conhecimentos, otimizados pelo surgimento de tecnologias modernas (transporte, comunicações, governança, etc.) e ampliação da universalização, internacionalização e liberalização (Meneguetti, 2012, p. 9).
Santos (2003, p. 12) define globalização como “o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”. Ele afirma ainda que a incorporação de comportamentos competitivos [capitalistas/neoliberais] infligidos pela hegemonia, contribuem para a evolução negativa da humanidade, para a perversidade sistêmica e para o aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas, bem como, reforça as mazelas e a perversidade da globalização. (Santos, 2003, p. 10).
Em síntese, as noções de riqueza, prosperidade e equilíbrio macroeconômico definidas pelo processo de globalização são fundamentadas no dinheiro em estado puro e os países são convencidos a se adaptarem para que alcancem o estado de desenvolvimento. Os Estados, indivíduos e/ou coletivos que não se adaptam acabam sendo excluídos e/ou sofrendo violências.
Entre abril e maio de 2022, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, denunciou violências cometidas por garimpeiros aos indígenas, citando o assassinato de uma criança de 3 anos e a violência sexual contra uma adolescente de 12, que acabou falecendo posteriormente. Após a publicização das informações, a aldeia foi incendiada e os moradores (cerca de 25 pessoas) haviam desaparecido. Os fatos ocorreram na comunidade Aracaçá, região de Waikas, no estado de Roraima, região marcada pelo avanço da exploração ilegal de ouro.
Recentemente, no mês de junho de 2022, outro caso ganhou notoriedade nacional e internacional: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados no Vale do Javari. Apesar de ainda não haver conclusão do caso, estima-se que a denúncia sobre a pesca e garimpo ilegais na região seria a motivação do crime. Além desses, inúmeros outros relatos de violências acontecem diariamente em todo o país.
Essa situação reforça o que foi descrito pelo relatório “last line of defense”, produzido e publicado pela Global Witness (2021), que afirma que o Brasil está em 4º lugar no ranking dos países com mais assassinatos de lideranças ambientais do mundo. São inúmeros os casos, situações e acontecimentos provocados pelo avanço do garimpo sobre as terras indígenas brasileiras, seja em terras Munduruku, dos povos do Vale do Javari, em terras às margens dos rios Jutaí e Japurá no médio Solimões ou nas terras do povo Yanomami. A cada dia que passa, cenários mais aterrorizantes se apresentam nesses e em outros territórios dos povos originários e camponeses.
A luta pela terra é a mãe de todas as lutas
A questão agrária no Brasil, além do que já foi analisado sob perspectiva colonial, revela também aspectos da problemática fundiária, elucidando a dificuldade do Estado no reconhecimento de territórios sociais pertencentes aos povos tradicionais. A noção de propriedade é marcada pelo tradicional colonialismo e modelo neoliberal de desenvolvimento pautado no capitalismo, excluindo e invisibilizando os modos de vida alternativos.
Concordando com essa premissa, Assis (2014, p. 616) destaca que “a expansão territorial e a dominação político-econômica das colônias foi condição indispensável para o desenvolvimento do capitalismo.” Para o autor, essa dominação permanece até os dias atuais e deslegitima a soberania dos povos sobre seus territórios, contribuindo para que as grandes corporações, multinacionais e conglomerados financeiros se utilizem do poder econômico para expandir e incorporar mecanismos que permitam acumular capital.
Assis (2014, p. 616) reforça ainda que sob a vigência da colonialidade, a apropriação e utilização dos recursos naturais são consideradas como vantagem comparativa e garantia da integração à economia global. Nesse sentido, entende-se que o extrativismo predatório é uma alternativa para se inserir no mercado global sob a perspectiva imperialista e colonial.
Little (2004, p. 255) evidencia que os processos de expansão fronteiriças do Brasil no período imperial e colonial foram marcados pela ocupação forçada e irrestrita dos territórios indígenas. A intenção de fortalecer os modos de produção, a escravização, a apropriação de terras para a plantação de cana-de-açúcar, algodão, criação de gado e a cafeicultura produziu “um conjunto próprio de choques territoriais [e] provocou novas ondas de territorialização”.
A resistência a essas invasões representa até os dias atuais uma resposta comum a essa expansão fronteiriça que ameaça o território dos povos tradicionais. Para Little (2004, p. 255-256) foram quinhentos anos de guerras, conflitos, confrontos, extinções, migrações forçadas e reagrupamento étnico. A invasão de territórios e a disputa pela terra e seus recursos estão na base e no centro da lógica colonial. Não se explora mão de obra e não se transforma natureza viva em lucro sem garantir a ocupação do território e o domínio sobre as políticas de uso da terra.
O contínuo desenvolvimento de políticas econômicas brasileiras a partir das injustiças fundiária e agrária escancara a colonialidade institucionalizada nas tomadas de decisão do país. Sob esta perspectiva, o Atlas da Violência no Campo (IPEA, 2020, p. 7) destaca que
[…] A manutenção do status quo e das enormes desigualdades subjacentes ao processo de exploração dependeu fortemente do uso da repressão e da violência contra grupos étnico-raciais, minorias políticas e classes econômicas subalternizadas, como povos indígenas, população negra, sertanejos, pequenos agricultores e trabalhadores rurais, entre outros grupos populacionais.
Pelo acúmulo crescente e irrestrito de lucro fortalecido desde a colonização, a máxima segue a mesma: aprimorar as técnicas e tecnologias de violência e terrorismo contra quem ainda ousa cultivar relações-outras com o território que habita. Faz-se relevante então contextualizar a formação identitária dos povos sob a conceitualização dos termos território, territorialidade e territorialização.
Penrose (2002, p. 280) destaca que “o juntar algumas pessoas e determinados recursos e separá-los de outras pessoas e outros recursos, a criação de territórios confere substância física e significado simbólico para noções de ‘nós’ e ‘eles’ e ‘nossa’ e ‘deles’”. Nesse sentido, o território é constituído a partir da interação física e social entre as pessoas, representada pela ação de união e/ou divisão de espaços e criação de limites. Sendo assim, Little (2004, p. 253) define a territorialidade como “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território ou homeland”. Ou seja, a partir da interação social e política dos indivíduos, há a noção de pertencimento e construção do território.
Considerando o exposto sobre território e territorialidade, Costa e Santos (2022, p. 9) trazem uma síntese sobre os assuntos e contribui com a contextualização do conceito territorialização:
[…] territorialidade diz respeito à dimensão cultural através da qual determinado grupo social dá sentido à sua relação com o espaço onde produz/reproduz a vida. Na verdade, trata-se de uma dimensão indissociável do conceito de território e acompanha a aventura humana por meio da qual os diversos grupos sociais se territorializam. Assim, há uma tríade conceitual indissociável entre território-territorialidade-territorialização: não há território que não comporte determinada territorialidade que não tenha sido conformada por um processo de territorialização com/contra outras territorialidades.
As instituições formais e simbólicas que sustentam a violência no campo foram edificadas pela racialização dos sujeitos. Sob a já mencionada égide do progresso da civilização, se legitimou a invasão de territórios e subjugação de povos tidos como racializados -povos não brancos, inferiores na hierarquia civilizatória moderna-colonial.
Para elucidar essa ideia, Pacheco e Faustino (2013, p. 76) afirmam que no Brasil, durante o processo histórico da colonização a distribuição de poder e riqueza entre as elites e a divisão de classes sociais, se fizeram presentes as desigualdades étnicas e raciais. Sob esta perspectiva, a noção “pseudocientífica” sobre a superioridade das raças exportada pela Europa foi incorporada ao ideário nacional, contribuindo para a institucionalização do racismo. Da mesma forma, garante a manutenção da estrutura de poder implementada ao longo da formação histórica, política e econômica do país.
Da injustiça fundiária se desencadeiam uma série de profundas questões sociais, econômicas, simbólicas, de gênero, urbanas, de habitação etc, que se complexificam, desenvolvem e se relacionam entre si. É a invasão e domínio da terra, o primeiro grande ato da dominação colonial, que permite a colonização também dos corpos, que posteriormente se complexifica nas colonialidades do saber, do ser, ou seja, dominações das subjetividades que permeiam a identidade, a cultura, o sentir, o agir, dos povos sob regime colonial, objetos de análise do pensamento decolonial. As violências coloniais que permeiam a subjetividade humana, por sua vez, sustentam a desigualdade no acesso, posse, uso e distribuição de terras. A centralidade do controle da terra deve ser, portanto, para o entendimento decolonial, um aspecto chave, considerando não tão somente a disputa de propriedade sobre a terra, mas também as implicações de poder ou não pertencer à terra e interagir com o território em outros modos não modernos/coloniais.
Essa correlação nos alerta para a necessidade de união e integração entre as lutas dos povos da floresta, do campo e da cidade. A emergência da preservação ambiental e da defesa da vida e modos de vida dos povos tradicionais e indígenas não se dá apenas pela realidade da crise ecológica e climática global; a crise é sistêmica, social, cultural e ambiental.
O capitalismo predatório se alimenta das nossas possibilidades de presente e futuro, cada vez mais voraz. A retomada da terra e a proteção aos Territórios – simbólicos, culturais, físicos, econômicos e ecológicos – Indígenas, quilombolas, camponeses, ribeirinhos e tradicionais já estabelecidos desobedecem à lógica capitalista de superextrativismo e superexploração, e são condição básica para a desestruturação das hierarquias das colonialidades do poder, do ser e do saber.
Referências
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