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BIBBY STOCKHOLM: REINO UNIDO E A DESUMANIZAÇÃO DO IMIGRANTE

Introdução

Com o objetivo de diminuir os custos relacionados aos imigrantes e solicitantes de refúgio, o governo britânico contratou uma embarcação destinada a abrigar temporariamente cerca de 500 pessoas. A Bibby Stockholm, uma embarcação operada pela Bibby Marine que está ancorada em Portland, na Inglaterra, recebeu seus primeiros ocupantes no início de agosto de 2023. No entanto, as condições do espaço e a descoberta de uma doença mortal a bordo suscitaram questionamentos sobre a desumanização dos imigrantes e a maneira como os refugiados são tratados no país. 

O processo de dissuasão e impedimento da entrada de imigrantes no Reino Unido remonta a um histórico colonial de relações eurocêntricas. Tanto as medidas historicamente adotadas pelos países europeus, quanto as recentes leis anti-imigração implementadas na Grã-Bretanha, têm contribuído para o aumento da hostilidade, do racismo e da xenofobia no território britânico. Essa conexão entre o passado colonial e as políticas contemporâneas ressalta a persistência de estruturas de poder que marginalizam e discriminam os grupos migrantes racializados, principalmente os advindos do Sul Global.

As respostas do Estado britânico à entrada de imigrantes em seu território, através de políticas anti-imigração fundamentadas em ideologias imperialistas e racistas, são formas de perpetuar uma divisão da população entre os que são considerados pertencentes e os que são excluídos. Desse modo, nota-se a forma como os imigrantes e refugiados são desumanizados, constantemente segregados da sociedade e colocados como ameaça à cultura, política, costumes e identidade nacional do país receptor. 

Este texto tem como objetivo analisar o processo de construção e hierarquização da identidade do “Outro” sob a perspectiva da colonialidade, utilizando como base o caso do Bibby Stockholm. Para isso, primeiramente é proposta uma apresentação do caso evidenciando a ligação histórica da empresa com o tráfico transatlântico e a forma como, nos dias atuais, os movimentos sociais se portaram diante da segregação imposta aos imigrantes ocupantes da embarcação. Em seguida, é feita uma contextualização sobre as políticas anti-imigração europeias, levando em conta aspectos históricos e factuais. Por fim, o texto aborda o processo de construção e desumanização da identidade do “Outro” na lógica da colonialidade.

Armadilha mortal: a prisão flutuante do Reino Unido

A embarcação Bibby Stockholm (imagem abaixo) possui 222 quartos duplos, projetados para atender cerca de 500 homens solteiros com idades entre 18 e 65 anos. Os primeiros ocupantes do navio, que embarcaram em agosto de 2023, foram submetidos a uma verificação de segurança em bases nacionais e internacionais, tendo seus dados e suas impressões digitais coletadas para registro. Ao longo desse processo, o governo britânico assegurava que o local era seguro e confortável para servir como moradia temporária aos imigrantes que ali seriam alocados. 

Entretanto, logo no dia da inauguração, uma bactéria mortal, a legionella, foi identificada no sistema de água a bordo. Embora os resultados tenham sido confirmados no mesmo dia em que os 39 imigrantes embarcaram, eles permaneceram alojados no navio por mais quatro dias antes de serem evacuados para a limpeza do sistema de água. A embarcação foi amplamente criticada por Organizações Não Governamentais (ONGs) e considerada uma potencial “armadilha mortal” (Askew, 2023). Apesar das denúncias de irregularidades na tubulação e o possível risco de morte, o Ministério do Interior inglês insistiu no retorno dos ocupantes afirmando que os reparos poderiam ser feitos mesmo com a lotação (Askew, 2023).

A insatisfação dos imigrantes foi generalizada visto que, dos 39 ocupantes iniciais, 37 enviaram cartas à ministra do Interior, Suella Braverman, denunciando as más condições a bordo e o caráter desumano da situação (Taylor, 2023a).  Além disso, após a notícia de que deveriam voltar à embarcação, um ocupante foi hospitalizado devido a uma tentativa de suicídio. Mesmo com todas as controvérsias, a barca voltou a ser utilizada no mês de outubro de 2023. 

Outro entrevistado, já dentro da barca, afirma que o tratamento recebido os faz preferir a morte à solicitação de asilo no Reino Unido. Ele denuncia que apesar das informações divulgadas insistirem que a entrada e saída da embarcação são livres, isso não ocorre de fato, uma vez que são controladas e só podem ser feitas para lugares estipulados e em horários específicos. Ele relata também a dificuldade de respirar ar puro sem fiscalização e a necessidade de  passarem por aparelhos de raio-X mesmo se forem a um pequeno quintal. Por fim, afirma que é uma prisão onde os prisioneiros não são criminosos, são pessoas que fugiram dos seus países de origem em busca de formas de sobrevivência (Taylor, 2023b).

Organizações como Refugee Council e a Asylum Matters and Refugee Action, preocupadas com o encarceramento dos solicitantes de asilo, emitiram uma carta aberta à Bibby Marine (Refugee Council, 2023), questionando as condições de alocação dos imigrantes, bem como sua liberdade de locomoção no recinto. Na carta, as entidades também mencionam os laços históricos da empresa com o comércio transatlântico de escravizados e cobram uma posição mais humana em relação às pessoas que já se encontram tão vulneráveis. É destacado que a prisão flutuante já foi utilizada também por alemães e holandeses, sendo alvo de denúncias de maus tratos e violência sexual, além de casos de suicídio.

A Bibby Marine, antiga Bibby Line Group, foi fundada em 1807 por John Bibby, um barqueiro de Lancashire que começou os negócios no porto de Liverpool. A empresa, que movimentou cerca de 41 milhões de euros em 2021, oferece serviços marítimos e de infraestrutura em 16 países ao redor do mundo. Entre os séculos XVIII e XIX, os 3 navios da família foram responsáveis pelo transporte de mais ou menos 737 pessoas escravizadas. Mesmo antes da fundação da empresa, o patriarca da família também lucrou com o comércio de matérias-primas, manufaturas e escravizados na rota triangular entre África, Europa e América (Flores, 2023).

Os descendentes de John herdaram mais de 18 embarcações, que serviram como navios-hospital e navios de transporte para fuzileiros britânicos durante a Primeira Guerra Mundial. O Bibby Stockholm foi construído em 1976 e transformado em alojamento a partir de 1992, sendo utilizado para abrigar pessoas em situação de rua em Hamburgo entre os anos 1994 e 1998 (Flores, 2023). Já em 2005, o navio foi transformado em prisão flutuante em Rotterdam. Nos Países Baixos, foi palco de inúmeros casos de violência e exploração sexual além de insalubridade, causando a morte de um argelino em 2008 devido a problemas cardíacos que não foram tratados a tempo. Atualmente, o presidente da empresa, Michael Bibby, alugou a embarcação para o governo britânico por 18 meses a fim de abrigar mais de 500 pessoas (Flores, 2023). 

A acomodação na Bibby Stockholm foi uma estratégia governamental tomada com base na nova política de imigração do Reino Unido. Em julho de 2023, o Parlamento Britânico aprovou a nova Lei de Imigração Ilegal, proposta por Rishi Sunak, o primeiro-ministro não-branco do Reino Unido e filho de pais imigrantes.  A lei propõe a criminalização e o não aceite de solicitações de refúgio de imigrantes que cruzam o Canal da Mancha. 

Descrita como “crueldade moral” por representantes religiosos, como o arcebispo e chefe da Igreja Anglicana, Justin Welby, e por diversas organizações humanitárias, essa nova política é considerada uma continuação da política anti-imigração defendida durante o mandato de Boris Johnson. A Lei também preconiza o impedimento da entrada e permanência de refugiados sem documentação e a devolução dessas pessoas para seus países de origem ou para um terceiro país (O globo, 2023).

O diretor de capacitação de sobreviventes da Freedom From Torture, Kolbassia Haoussou, declara que o plano de colocar os refugiados em uma barca que potencializa risco de morte é um plano cruel. Para o diretor, os imigrantes saem de seus países sob forte ameaça à sua dignidade e integridade, e não deveriam ser tratados com punição, mas sim com apoio e proteção. Dessa maneira, acrescenta ainda que o governo britânico deve concentrar seus esforços em reconstruir um sistema de asilo pautado no respeito à humanidade e compaixão, não em habitações inseguras e precárias (Askew, 2023). 

A contradição entre essa legislação anti-imigração e as normas internacionais de respeito aos direitos humanos e aos direitos dos refugiados revela uma disputa nas arenas nacional e internacional, que segue sendo alvo de críticas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e de diversas ONGs. Apesar da recente lei, a criminalização de imigrantes, solicitantes de asilo e refúgio não é novidade na região.

Resquícios da colonização e o discurso anti-imigrante

Desde o período de expansão colonial, a Inglaterra recebeu imigrantes originários de diversas nações e se consolidou como potência mundial a partir da exploração de pessoas e recursos naturais provenientes de suas colônias na África, Ásia e nas Américas. Além disso, é importante mencionar a incidência de emigração de ingleses para os territórios colonizados, com o objetivo de exercer controle absoluto sobre as populações nativas das colônias. Isso se concretizava por meio do envio de soldados, marinheiros, comerciantes e administradores políticos (Castles, 2009, p. 23). Sendo assim, a diversidade étnica, cultural e racial que hoje pode ser encontrada nas grandes cidades britânicas é herança dos múltiplos fluxos populacionais de entrada e saída no país ao longo dos séculos.

De acordo com a Migration Watch UK (2014), as primeiras levas de migrantes para a Grã-Bretanha contemporânea ocorreram no século XVI, momento em que a Inglaterra ainda poderia ser considerada amplamente “homogênea”. O tráfico transatlântico de negros escravizados, provenientes da costa oeste da África, deu início a uma comunidade africana no país a partir do século XVII, que chegou em solo metropolitano de maneira forçada e involuntária. Sendo assim, conforme cresciam as atividades inglesas relacionadas ao comércio de pessoas, maior se tornava a população de descendentes africanos em território inglês. No entanto,  houve um declínio na entrada de africanos no país com a proibição da importação e comercialização de escravizados na Inglaterra a partir de 1807 por meio de um ato que visava principalmente a inserção dos ex-escravos no mercado consumidor  (Migration Watch UK, 2014).

No século XVIII, é preciso destacar a incidência de imigração proveniente do subcontinente indiano, que diz respeito aos atuais territórios da Índia, Paquistão e Bangladesh (Hiro, 1979, p. 217).  Nesse contexto, famílias abastadas costumavam levar servos indianos para o Reino Unido. A partir do século XIX surgiram pequenas comunidades de imigrantes estabelecidas por marinheiros negros e chineses, coincidindo com a chegada de milhares de irlandeses fugindo da pobreza entre 1830 e 1850 (BBC UK, 2002). Simultaneamente, o século XIX foi palco de um movimento migratório judaico que se deu pela fuga de judeus da Europa Oriental como consequência da instabilidade política e econômica na região (Migrant Watch UK, 2014). O alto número de imigrantes judeus fez com que a Inglaterra decretasse sua primeira lei de controle migratório, a Lei do Estrangeiro (Aliens Act), que tinha como objetivo limitar a entrada de imigrantes indesejados, ou seja, aqueles que não apresentavam vantagens culturais e econômicas na visão do Estado inglês.

Durante a Primeira Guerra Mundial, milhões de soldados provenientes das colônias britânicas se uniram aos esforços de guerra e lutaram pela Grã-Bretanha, sendo a Índia a principal fornecedora de soldados, com pelo menos 1,3 milhões de seus cidadãos servindo o exército inglês (BBC UK, 2002). Por mais que no período entreguerras alguns dos soldados sobreviventes tenham sido mandados de volta aos seus países de origem, outros conseguiram se estabelecer na Inglaterra. Como resultado, renovou-se a preocupação do governo em relação ao aumento da população não-branca no país, o que dá origem ao segundo “Aliens Act” (Lei do Estrangeiro) em 1919. A partir disso, o passaporte passou a ser exigido para entrada no Reino Unido, a fiscalização dos migrantes aumentou, passou a ser permitida a deportação daqueles que cometessem crimes e a negação de entrada aqueles que poderiam vir a ser um peso para o Estado (Souza, 2019, p. 21). 

O cenário se repetiu na Segunda Guerra Mundial e, em 1948, foi estabelecido o “British Nationality Act”, que introduziu o conceito de cidadão reservado para aqueles que nasciam no Reino Unido e nas colônias britânicas. Dessa forma, os imigrantes vindos de territórios pertencentes ao império britânico possuíam o direito de viver e trabalhar no Reino Unido (Reino Unido, 1948), norma que também se estendia àqueles que tivessem pais que se encaixavam nas categorias citadas. Essa lei foi benéfica para a Inglaterra na conjuntura pós-guerra, uma vez que o país passou a convidar imigrantes de suas ex-colônias para residir na região e servir como mão de obra para a reconstrução econômica, estrutural e política inglesa, que foi abalada durante o conflito. Ainda assim, esses grupos eram recebidos com desdém por grande parte da população britânica e não obtiam o mesmo tratamento que os ingleses nos sistemas educacional, social e jurídico (Sayyid, 2023).

O racismo, a xenofobia e a hostilidade em relação aos imigrantes, que vinham principalmente dos países da África Ocidental, do Caribe e da Índia, só aumentaram nos anos seguintes, bem como as restrições voltadas para dificultar sua entrada no país. Como exemplo, houve o episódio violento de racismo que ocorreu em Notting Hill, bairro em Londres, que recebeu uma enorme quantidade de imigrantes no período pós-guerra e acabou se tornando palco de atritos entre os brancos ingleses e a população migrante do local. 

A política de recrutamento visando a reestruturação do país não foi acompanhada de políticas de acolhimento e integração. Em agosto de 1958, a população negra do bairro passou dias sendo atacada por grupos de britânicos brancos, que planejaram os atos de violência sem que a polícia interviesse de maneira eficiente. Muitos imigrantes foram esfaqueados, agredidos, ameaçados, além de terem suas casas e comércios invadidos, destruídos e incendiados. Como a polícia não fez esforços para acabar com a situação e proteger a população que ali vivia, a comunidade negra local também se organizou em grupos para deter a violência, fazendo com que as ruas de Notting Hill fossem tomadas por centenas de pessoas (Leal, 2018).

Para o Estado, enquanto os imigrantes eram “úteis” e podiam ser explorados em benefício da (re)construção da Grã-Bretanha, a imigração era incentivada. A partir do momento que não precisavam mais deles como mão de obra barata, ocorre uma mudança nos discursos e políticas voltadas para a imigração. Nesse contexto, a Inglaterra implantou o “Commonwealth Immigrants Act”, em 1962, que restringia a admissão e livre circulação dos imigrantes vindos das ex-colônias, ao mesmo tempo que facilitava a entrada de cidadãos oriundos de países europeus (Souza, 2019, p. 22). 

Outras versões da Lei foram sendo implementadas com o passar dos anos, como o “Commonwealth Immigrants Act” de 1968 e o “Immigration Act” de 1971, que continuaram a servir aos interesses do Estado inglês de impedir a entrada de imigrantes indesejáveis ao passo que incentivava a imigração vinda de outros países do Norte global. Seguindo essa lógica, durante o governo de Margaret Thatcher, iniciado em 1978, a mídia em conjunto com o Estado teve um papel de destaque na vilanização dos imigrantes negros caribenhos. Colocados como assaltantes, os imigrantes eram constantemente assunto dos principais jornais da época, que buscavam construir uma imagem racista e xenofóbica da comunidade negra, causando pânico na parcela branca da população (Rodriguéz, 2018, p. 18).  Nesse sentido, o Estado corroborou com a narrativa prevalecente, introduzindo medidas que aumentaram o controle social e a discriminação racial de modo a ganhar apoio da opinião pública na implementação do modelo de sociedade visado por Thatcher. Houve, portanto, a legitimação de discursos e doutrinas de cunho racista, que contribuíram para forjar uma analogia entre atividades criminosas e homens negros e marrons (Rodriguéz, 2018, p. 19). 

Atualmente, a maior parte dos solicitantes de asilo e refúgio vêm de países em conflito onde há guerra e perseguição política, como Sudão, Síria, Irã, Iêmen e Afeganistão (Blasco, 2021). Com a saída do Reino Unido da União Europeia em 2016, o avanço das políticas anti-imigração se escalou, levando à Lei de Imigração implementada em julho de 2023 e o uso do navio Bibby Stockholm para impedir a entrada irregular de imigrantes pelo Canal da Mancha. Desse modo, a imigração continua a desempenhar um papel importante na sociedade britânica nos dias de hoje e, conforme cresce o número de imigrantes, solicitantes de asilo e refugiados, maior se torna a aversão à imigração e a propagação de discursos xenófobos e racistas.

Fica explícita, sob a perspectiva eurocêntrica, a tentativa de impor o europeu/homem/branco como humano e sujeito de direitos, ou seja, pessoa como “nós”, enquanto o imigrante é visto como como o “Outro”, o pseudo-humano, o animalesco, inferior, bárbaro e não-civilizado, que merece as ações punitivistas e anti-imigrantes implementadas para lidar com a chamada “crise” migratória. É dessa maneira que diferentes políticas anti-imigração são aprovadas no parlamento britânico e recebem o apoio de grande parte da população. Nesse sentido, os discursos buscam se esconder na falácia de uma sociedade inglesa monocultural, monolíngue, mono étnica e mono racial, que estaria sendo “rompida” pela entrada de imigrantes no país. Concordando com Rodríguez (2018), entendemos que essa narrativa não leva em conta que a construção da Inglaterra está diretamente ligada com diversos países do Sul Global que foram invadidos, colonizados, expropriados e violentados por pessoas provenientes do Reino Unido.

A desumanização do imigrante e a construção do outro na lógica da colonialidade

Apesar de a Grã-Bretanha se apresentar ao mundo como uma sociedade cosmopolita, multicultural e acolhedora, lar de uma ampla gama de grupos étnicos e com uma história de imigração rica e complexa, os grupos minoritários que lá residem enfrentam ataques racistas e xenófobos de forma contínua. Nesse sentido, a embarcação Bibby Stockholm é entendida como exemplo da tentativa de segregação entre imigrantes e cidadãos britânicos. O discurso sobre a preservação e proteção dos direitos humanos muitas vezes é usado como justificativa para atitudes xenofóbicas, como evidenciado repetidamente na opinião pública local divulgada pelos meios de comunicação. 

No dia 18 de julho de 2023, o perfil do Manchester Evening News no Instagram noticia a chegada da embarcação que abrigaria temporariamente os imigrantes. Os comentários (imagem abaixo) evidenciam uma infinidade de reações xenofóbicas, insinuando que se preencham as vagas do navio e devolvam os ocupantes para seus países de origem, ou que os levem para a França, e até mesmo questionando o tratamento “luxuoso” para os migrantes em detrimento do desumano dado aos ingleses em situação de rua.

Fonte: Elaboração própria (2024)

Considerando as opiniões expostas nos comentários da publicação, é perceptível o preconceito escancarado e o distrato com a população imigrante. Para Quijano (2000), os europeus criaram a configuração de um novo sistema de relações intersubjetivas de dominação, no qual expropriaram e reprimiram as populações colonizadas em diversos âmbitos. De acordo com o autor, essa persistência da hegemonia de poder mesmo após a independência formal dos países colonizados é denominada colonialidade. Sob a perspectiva eurocêntrica, o homem de direitos pode ser traduzido como “pessoa como nós”, já os diferentes são considerados pseudo-humanos.

A desumanização e racialização do não ocidental tem sido historicamente utilizada para justificar a segregação entre aqueles considerados dignos de direitos e os que não são. O colonizador impõe sua dominação e reivindica superioridade, enquanto o grupo subjugado pelo poder militar e econômico é desumanizado em múltiplas dimensões (Bragato, 2014). Assim, os imigrantes são percebidos como “o Outro”, sujeitos a uma exposição constante e obstáculos recorrentes que impedem o pleno exercício de seus direitos fundamentais.

Importante destacar que a noção de colonialidade é observada não somente nas relações econômicas e políticas, mas também na esfera da produção de conhecimento. Quijano (2000) destaca a instituição de um paradigma universal de conhecimento baseado na produção ocidental, enraizado na racionalidade e na modernidade. Para o autor, o colonialismo é um processo de poder e a colonialidade é uma característica desse poder. Maldonado-Torres (2007, p. 131) concorda com essa descrição e acrescenta ainda que o colonialismo antecede a colonialidade e a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Essa premissa se perpetua nas produções acadêmicas, na cultura, identidades e autodeterminação dos povos. 

Os aparelhos estatais e as estruturas de poder das instituições acabam perpetuando os processos de dominação. Silva e Piseta (2019, p. 30) destacam que a divisão moderna que justifica a dominação categoriza os seres humanos como superiores (europeus) e inferiores (não europeus). Nesse contexto, as hierarquizações fundamentadas na ideia colonial de raça acabam persistindo também em escalas supranacionais. Embora na União Europeia haja um discurso amplo sobre respeito à diversidade e aos direitos humanos, na prática, apenas os europeus desfrutam plenamente desses direitos. Os grupos marginalizados, rotulados como “Outros”, constantemente sofrem suspeitas e questionamentos sobre sua humanidade, especialmente quando suas identidades são racialmente estereotipadas.

Em tese, os processos migratórios são entendidos como um direito humano nos discursos dos países europeus. No entanto, os migrantes, especialmente os do Sul Global, enfrentam discriminação e são diretamente afetados por políticas públicas que visam desencorajar e criminalizar sua presença, resultando no processo de marginalização social. Nessa divisão abissal entre o Norte “desenvolvido” e o Sul “subdesenvolvido”, a coexistência desses dois mundos é considerada inimaginável sob a perspectiva da colonialidade.

Nesse sentido, Bragato (2014, p. 213) destaca que uma linha invisível dividiu o mundo moderno em dois, de um lado, o mundo desenvolvido, racional, progressista e espaço de emancipação, de “Outro”, o subdesenvolvido, primitivo, selvagem, espaço para reprodução da violência que justifica o abuso e a desordem. Mesmo sendo ambos modernos, essa divisão designou a separação entre o conhecimento científico e o conhecimento popular/leigo/plebeu/camponês/indígena.

Quijano (2000, p. 6) ressalta como o etnocentrismo europeu molda o controle das determinações biológicas. Assim, os europeus são rotulados como inerentemente superiores, corroborando com a noção exclusivamente europeia de modernidade e racionalidade. Sob essa visão, o mundo é categorizado em termos de oriente-ocidente, primitivo-civilizado, mágico e mítico versus científico, irracional-racional, tradicional-moderno e desenvolvido-subdesenvolvido. Considerando essa divisão, Silva e Piseta (2019, p. 34) destacam que o imigrante do Sul tende a ser inferiorizado e ter as suas experiências e existência invisibilizadas pelos dominantes. Em síntese, os indivíduos adotam práticas e discursos que os colocam em uma posição de superioridade, baseada em estereótipos relacionados à cultura, idioma, religião, características fenotípicas, entre outros, o que resulta na hostilização da imagem, cultura e existência do “Outro”.

Resende e Angra (2020, p. 163) notam que a retórica da modernidade pautada nos termos de salvação, progresso, desenvolvimento, modernização e democracia é perpetuada na lógica da colonialidade. A demarcação entre sociedades civilizadas e não civilizadas representa uma estratégia de subalternizar sujeitos, povos e comunidades a partir de uma classificação racial/cultural. Dessa maneira, não à toa os corpos migrantes que buscam refúgio na Europa são advindos de países que foram colonizados e/ou que sofreram agenciamentos de potências europeias ou dos Estados Unidos, bem como interferências políticas e econômicas.

A estratificação e subalternização, que têm por objetivo impor e fixar “o Outro” em determinado espaço sem considerar suas especificidades, também são traços da colonialidade. Sendo assim, Resende e Angra (2020, p. 165) defendem que as barreiras impostas aos migrantes e refugiados nas fronteiras são ferramentas da colonialidade do poder e tem a finalidade de separar/delinear as diferenças do outro, ou seja “de quem está do outro lado”. O controle e subordinação dos ditos “Outros” ao sujeito dito civilizado/branco remete ao período colonial e suas estruturas ainda prevalecem.

O impedimento da entrada no continente europeu ou políticas que ensejam o controle de migrantes desde sua partida ainda em seus países de origem se apresentam com a evocação da memória colonizadora da Europa, particularmente, e é ela que acende o debate sobre a chamada crise migratória, pois, a travessia pelo Mediterrâneo traz esse influxo de pessoas que carregam consigo corpos negros e árabes e seus territórios outrora marcados pela pilhagem colonial (Resende; Angra, 2020, p. 167).

É possível compreender que os países europeus se utilizam de dispositivos e estruturas para manutenção dos seus espaços de influência, controle e poder. Essa vertente pode ser identificada nas barreiras impostas pelas leis de migrações da região, bem como na forma como o imigrante, a depender da sua identificação geocultural, é recebido no território europeu. Os imigrantes racializados são constantemente desumanizados e alvos de racismos, rejeição e preconceitos.

Considerações finais

A maneira como a Inglaterra lida com a questão migratória atualmente é um reflexo do extenso histórico de exploração e subjugação dos diferentes povos que o país colonizou, invadiu e extorquiu ao longo de sua história. Apesar da ligação explícita entre os movimentos migratórios, os motivos que os impulsionam e o passado imperialista da nação britânica, dificilmente a memória do colonialismo europeu é trazida à tona no momento da formulação e implementação das políticas anti-migração. 

Dessa forma, a partir da construção do “Outro” como ameaça à cultura, política e identidade nacional, tem-se a inferiorização da figura do imigrante, potencializada pela hierarquização racial. Enquanto determinados grupos de imigrantes são representados pela mídia e pelo Estado como bárbaros, não-civilizados e vistos como pesos para os cofres públicos, outros são colocados como “bons vizinhos” que colaboram para a economia do país e portanto podem entrar sem restrições. Sendo assim, o governo britânico, por meio de suas instituições, tem aval para rejeitar e aprovar a entrada de pessoas em seu território com base na etnia, raça e nacionalidade do solicitante. 

O caso do Bibby Stockholm demonstra como o Estado inglês tenta deslegitimar e desumanizar grupos específicos de pessoas. Ressalta-se o uso de discursos que colocam a migração como algo negativo para a população local e posicionam o imigrante racializado como risco à economia, bem-estar e segurança da região. Nesse sentido, nota-se a negação da humanidade dos solicitantes de asilo tanto por parte do governo, quando suas políticas de imigração tratam os imigrantes como prisioneiros, quanto por parte da população local, que os trata com preconceito e xenofobia. Dessa maneira, a criminalização do imigrante opera como uma ferramenta de dissuasão e impedimento da busca por sobrevivência de determinados grupos sociais.

Referências

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