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ORIENTALISMO E X-MEN: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM PÓ

Uma versão atualizada e expandida deste post está publicada na Revista 9ª Arte com o mesmo título. Clique aqui para visualizar o artigo.

O dia que o vento mudou de direção

Em 2021, a jornalista Simone Duarte publicou o livro “O vento mudou de direção”, fruto de sua experiência na cobertura do atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Esse acontecimento marcou profundamente a história do tempo presente e, a partir dele, a forma como o assim chamado “Oriente” e seus habitantes são vistos foi transformada. A obra de Duarte tem como objetivo dar voz a certas vítimas do ataque: não aquelas cujas vidas foram perdidas pelos choques dos aviões ou seus familiares, mas sim os indivíduos cujas realidades foram viradas de ponta cabeça: os afegãos, paquistaneses, iraquianos e quaisquer outros que passaram a ser vistos e tratados de forma diferente após aquele dia.

A percepção negativa acerca do “Oriente”, contudo, não surgiu nesse momento. Ao longo dos séculos, produziram-se inúmeras obras que construíram uma imagem distorcida dessa parte do mundo, atribuindo-lhe diversos estereótipos e generalizações. Foi precisamente esse fato que levou Edward Said a desenvolver a ideia de Orientalismo. Com uma análise focada no século XIX e na colonização europeia sobre o “Oriente”, Said aponta a forma como o desequilíbrio de poder entre dois extremos concede a um a autoridade para, a partir de discursos veiculados por diferentes meios, criar e impor uma visão sobre o outro. Tal ponto de vista, por sua vez, é utilizado como justificativa para o controle que é exercido (SAID, 2001).

Vale ressaltar ainda que isso acaba contribuindo para a naturalização dessa violência de nomear a criar conhecimentos sobre o Outro que reiteram uma determinada hierarquia. Normalmente, esse processo ocorre por meio de oposições: civilização e barbárie, modernidade e atraso, liberdade e opressão, dentre outras. Dessa forma, a superioridade de um grupo – o Ocidente, por exemplo – parece inquestionável quando se trata, acima de tudo, de uma construção pautada no poder colonial ou imperialista.

Nesse sentido, é possível afirmar que os eventos do 11 de setembro geraram uma espécie de renovação do fenômeno apontado por Said. Agora, era necessário legitimar não a colonização da Europa sobre o ‘’Oriente’’, mas sim as invasões dos Estados Unidos nesses territórios a partir da Guerra ao Terror, consequência direta do atentado. Dessa forma, livros, artigos, reportagens e até histórias em quadrinhos tornaram-se meios para difundir discursos com esse propósito nefasto.

A Guerra ao Terror foi declarada pelo então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em um discurso feito no dia 20 de setembro de 2001. Nessa fala, Bush refere-se ao atentado do dia 11 daquele mês como um “ato de guerra” cometido por “inimigos da liberdade” e atribui sua autoria ao grupo terrorista Al Qaeda. Em seguida, afirma que o Afeganistão e seu governo – sob a forma do Talibã – sofriam com grande influência desse grupo. Caso o Talibã não cooperasse no combate aos terroristas, sofreria de seu mesmo destino (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2001).

Bush destaca que todos os recursos possíveis seriam usados naquela guerra, que seria diferente de outros conflitos recentes. Isso porque ela não terminaria de forma rápida e decisiva, mas teria um caráter contínuo e duradouro como nunca antes visto. Assim, sob o pretexto de combater a Al Qaeda apoiada pelo governo do Talibã e o terrorismo no geral, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e ali permaneceram por vinte anos, mesmo após derrubar o regime do grupo. Durante esse período, as condições de vida se deterioraram consideravelmente no país, fazendo crescer de maneira expressiva o número de refugiados dali. De acordo com dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), cerca de 2,7 milhões de afegãos foram deslocados à força de seu país (ACNUR, 2021).

A Guerra ao Terror gerou certo ímpeto para se compreender aqueles que agora eram os “inimigos” nacionais dos Estados Unidos, ou até globais, segundo as pretensões de Bush. Silva (2013), discutindo o papel do Orientalismo no imperialismo pós 11 de setembro, ressalta como a literatura e a mídia refletem a necessidade da sociedade civil de compreender os assuntos que estão em evidência, gerando, por exemplo, uma explosão de livros e reportagens sobre determinada temática – o ‘’Oriente’’, nesse caso – para atender a essa demanda. Tais obras, no entanto, tendem a priorizar responder os anseios imediatos da população com um conteúdo superficial e que serve aos interesses políticos nacionais, ao invés de abarcar as nuances e complexidades dos processos a que se referem.

É nesse contexto que, em New X-Men #133, publicada em outubro de 2002, apareceu pela primeira vez a personagem Sooraya Qadir, vulgo “Pó”, Muçulmana de origem afegã, sua representação dentro da trama traz de forma pouco sutil algumas concepções orientalistas que ainda integram o imaginário ocidental sobre o Leste, sobretudo em relação às mulheres muçulmanas. A seguir, serão analisadas Sooraya e a história em quadrinhos mencionada a fim de explorar algumas de suas problemáticas.

O véu da heroína

Os super-heróis costumam ser lembrados por três fatores: suas aparências marcantes, seus poderes e suas personalidades. Em relação à representação de Pó, todos são questionáveis. Em primeiro lugar, Sooraya se veste de uma forma que possibilita imediatamente reconhecê-la como muçulmana e “oriental”: trajando um vestido abaya e um véu, quase completamente coberta (figura 1). O véu usado por Sooraya é constantemente chamado de burqa – tipo de cobertura que é ligada à região do Afeganistão e cujo uso compulsório foi imposto às mulheres pelo Talibã durante seu primeiro governo (SILVA, 2021). Entretanto, trata-se de um niqab, cobertura mais comum na Arábia Saudita e relacionada à vertente wahabita do Islã. No que diz respeito à aparência, a diferença básica entre os dois véus é que o niqab deixa os olhos à mostra, enquanto a burqa cobre todo o rosto e as mulheres que o utilizam enxergam através de telas (figura 2).

Percebe-se, pois, que, desde os elementos mais básicos, não há o mínimo cuidado de Grant Morrison e Ethan Van Sciver – criadores de Pó – em retratar sua cultura e tradições de forma adequada. Diante disso, roteiristas e artistas de títulos subsequentes seguem esse padrão e utilizam a presença de Sooraya em suas histórias como artifício para apresentar visões preconceituosas e simplistas sobre o “Oriente” e o Islã. A difusão em massa desses discursos, presente também em outras formas de mídia, contribui para sua aceitação enquanto verdade e resulta em percepções distorcidas dos indivíduos que eles supostamente representam.

Figura 1. Pó na capa de New X-Men: Hellions. Fonte: Henry (2005).

Figura 2: Tipos de véus islâmicos. Fonte: <https://barringtonstageco.org/types-of-islamic-veils/>.

O problema mencionado será repetido por anos na escrita de Grant Morrison e posteriormente na de Nunzio DeFilippis e Christina Weir, roteiristas iniciais de New X-Men (2004), inclusive dentro de falas da própria Sooraya. Essa questão é revista apenas na edição #42 do título, publicada em setembro de 2007 e escrita por Craig Kyle e Chris Yost. A falta de conhecimento efetivo sobre a realidade e os costumes das pessoas sobre as quais escrevem não é novidade aos autores orientalistas, fato que o próprio Said (2001, p. 85) denuncia: “Este é o apogeu da convicção orientalista. Qualquer generalidade ganha foros de verdade; qualquer lista especulativa de atributos orientais acaba por se aplicar ao comportamento dos orientais no mundo real”.

A opção por considerar o “Oriente”, o Islã e os muçulmanos como um grande bloco homogêneo e chamar qualquer véu de burqa em vez de pesquisar minimamente sobre as múltiplas vertentes da religião e suas tradições para trabalhar com uma personagem muçulmana em sua obra gera consequências. A partir disso, configuram-se violências contra grupos de pessoas cujas culturas são simplificadas e questionadas. Julga-se as mulheres que usam o véu, mesmo que por opção própria, porque essa prática é considerada fruto de algum tipo de opressão. A legitimidade de suas motivações (crenças) sequer é cogitada, visto que não é dado espaço para alguma complexidade desse Outro. 

Os poderes da personagem, por sua vez, consistem em se transformar em uma massa maleável de areia. Como pontuou Hosein (2020), essa escolha dos criadores perpetua uma clássica visão do “Oriente” como nada além de um grande deserto incivilizado – oposto à grandiosa e moderna civilização ocidental. Porto, Filho e Silva (2017), ao estudar a manifestação do Orientalismo na mídia contemporânea, destacam algumas obras que reproduzem essa visão, como o filme “O Príncipe do Deserto” e o desenho animado “Popeye encontra Ali Babá e os 40 Ladrões”.Tal imagem é, sobretudo, associada a uma ideia dos países orientais como atrasados tanto estética quanto politicamente e contribui para naturalizar a relação entre eles e o conservadorismo, abrindo espaço para uma suposta necessidade de atuação estrangeira com seus valores de liberdade e justiça. 

Já a (falta de) personalidade de Sooraya está atrelada aos estereótipos carregados por seu visual. Hosein (2020, p. 1) pontua que a representação da mulher muçulmana usuária do véu está restrita a duas imagens: a “dançarina do ventre sexualizada” ou a “dona de casa sem rosto cuja forma é coberta por um manto escuro”. Ainda, a autora acrescenta que o propósito da segunda categoria é de ser irrelevante ao enredo, como se fosse uma mera parte do cenário, além de silenciosa e desprovida de personalidade. Partindo para a análise de cenas de New X-Men #133, veremos como essas características se encaixam.

O perigo da salvação

A história começa de forma emblemática: vemos o Wolverine – um dos mais famosos super-heróis norte-americanos – sobre uma pilha de corpos de homens afegãos mortos por ele, perguntando o que seria preciso para fazer aquelas pessoas ouvirem a “razão”. Posteriormente, descobrimos que esses indivíduos (e quaisquer habitantes do Afeganistão presentes na história, com exceção de Pó) tratavam-se de comerciantes de escravos e abusadores. Assim, a violência aplicada contra eles é justificada sob o pretexto de combate a um inimigo incapaz de ser racional (figuras 3 e 4).

Figuras 3 e 4: Wolverine no Afeganistão em New X-Men #133. Fonte: Morrison; Van Sciver (2001)

Diante disso, o papel desempenhado por Sooraya é, inicialmente, ser resgatada por Wolverine e Fantomex (um mercenário ocidental) das mãos desses cruéis homens orientais. Essa trama opera com uma noção perigosa: a de que as mulheres orientais, especificamente as muçulmanas, precisam ser salvas pelo Ocidente. Como aponta Abu-Lughod (2012, p. 465): 

É profundamente problemático construir a mulher afegã como alguém que precisa de salvação. Quando se salva alguém, assume-se que a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando para alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão sendo feitas sobre a superioridade daquilo para o qual você a está salvando? Projetos de salvar outras mulheres dependem de, e reforçam, um senso de superioridade por parte dos ocidentais, uma forma de arrogância que merece ser desafiada. 

A autora ainda lembra do discurso feito por Laura Bush, esposa de George Bush, a respeito da invasão ao Afeganistão em 2001, que opera com uma ideia semelhante à que norteia essa cena. Bush mobiliza o sofrimento das mulheres e crianças afegãs causado pelo grupo Talibã como uma forma de legitimar os ataques de seu país contra o delas, alegando estar ajudando-as a se libertar. Trata-se de uma perspectiva absolutamente perversa, pois, em primeiro lugar, ignora a capacidade de ação e mobilização dessas mulheres, como se aceitassem passivamente sua opressão – quando ela de fato ocorre, como no caso do Talibã. Além disso, se algo vai ajudar em sua luta, certamente não são as bombas dos Estados Unidos ou as garras do Wolverine. Afinal, os 20 anos de ocupação do Afeganistão deixaram cicatrizes profundas no país e seus habitantes, além de cemitérios lotados por vidas inocentes perdidas.

Simone Duarte, em sua obra, entrevista pessoas cujas vidas foram impactadas pelo 11 de setembro e suas consequências. Entre elas, está o general paquistanês Ehsan ul-Haq, que vai dizer:

Você leu o Washington Post? Os “Afghan Papers”, 2 mil páginas de documentos oficiais que provam que o governo dos Estados Unidos mentiu durante dezoito anos ao seu próprio povo sobre a guerra no Afeganistão. Sabiam que estavam perdendo, mas divulgavam que estavam vencendo. Mentiram. No Washington Post, o jornalista enfatizava também o número de mortos. Cento e cinquenta e sete mil pessoas foram mortas no Afeganistão desde o Onze de Setembro. No Iraque, as estimativas são ainda piores, de 1 a 2 milhões, ninguém sabe ao certo. Aqui no Paquistão foram 70 mil mortos em dezoito anos. Os Estados Unidos tiveram 3 mil mortos no dia 11 de setembro. Eles disseram que o mundo não seria mais o mesmo e saíram matando mais de 1 milhão de pessoas. É inacreditável (DUARTE, 2021, p. 213).

Vale ressaltar que essa posição dos Estados Unidos sobre o Afeganistão acompanha uma mudança no lugar que o país centro-asiático ocupa em seu imaginário a partir de 2001. Como pontua Silva (2013), as duas nações eram aliadas na década de 1980, quando os EUA financiavam guerrilheiros que viriam a formar o mesmo Talibã que oprime as mulheres que eles dizem querer salvar, a fim de conter o avanço da União Soviética no “Oriente”. Nessa época, a produção cultural expressava tal relação com filmes como Rambo III, que demonstra a união entre os países e exalta os afegãos. O filme termina com uma dedicatória aos valente povo do Afeganistão (figura 5).

Figura 5: Dedicatória no final de Rambo III. Fonte: Rambo III.

Porém, quando o país deixa de ser útil aos objetivos norte-americanos, servindo como uma forma de enfraquecer seu principal rival político e econômico da época, e passa a ocupar a posição de inimigo com o atentado de 11 de setembro, a cultura perpetua essa ideia. Nas representações do país e de seu povo, como é o caso de New X-Men #133, os “corajosos” afegãos são transformados em terroristas e extremistas religiosos.

Após o momento inicial, a trama muda o foco para Charles Xavier e Jean Grey em outro local e Pó fica em segundo plano. Essa situação é, por um lado, contraditória, considerando que o título da história é Dust (o nome da personagem em inglês) e ela estampa sua capa (figura 6). Ou seja, é dado a entender que Sooraya teria um papel relevante, até de protagonismo. Por outro lado, isso serve como uma prévia do que vai ser seu papel nas histórias subsequentes de Morrison: o de coadjuvante e mera composição de cenário, quando não uma exclusão completa. Isso nos inclina a pensar que a criação da personagem visa mais abrir espaço para certos discursos dentro da obra – uma das histórias em quadrinhos mais vendidas do início do século — do que qualquer coisa.

Figura 6. Pó na capa de New X-Men #133. Fonte: Morrison; Van Sciver (2001).

Quando Sooraya – até então, inconsciente em todos os momentos – volta à cena, ela tem sua primeira e única fala em toda a edição: a palavra em árabe turaab, que é traduzida como “pó”, e daí vem seu codinome (figura 7). Embora não seja impossível, é no mínimo curioso uma afegã optar por essa língua para se comunicar, visto que os idiomas oficiais e mais falados no país são o dari e o pashto. A explicação mais provável para essa escolha é outra generalização por parte dos criadores, reproduzindo o senso comum orientalista de que todo muçulmano é árabe, ou ainda de que todo habitante do Oriente Médio é árabe.

Parte da potência do Orientalismo enquanto uma forma de produzir conhecimento reconhecido como verdade reside justamente nessa capacidade de homogeneizar uma região que compreende desde o norte da África à Península Arábica e à Ásia Central, que abarca povos que vão dos árabes aos turcos e aos cazaques, mas que passam a ser de forma genérica como árabes. Simplifica ou ignora milênios de História e política e reduz centenas de culturas aos mesmos atributos limitados, sempre as considerando inferiores quando comparados ao Ocidente. Em suma, o “Oriente” é uma invenção que serve ao propósito de engrandecer seu opressor: 

o Oriente não é um fato inerte da natureza […] setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra (SAID, 2001, p. 31).

Nesse sentido, Sooraya, enquanto escrita por Morrison, além de (literalmente) não ter voz, não possui uma história própria, familiares, relações, ambições ou desejos. Ela é apenas uma afegã e muçulmana a mercê do olhar ocidental, não existindo além desses rótulos. Tanto é que sua única fala nas edições posteriores à sua primeira aparição é “Socorro. Me Ajude, Professor X”, em New X-Men (2001) #146. “Professor X” refere-se a Charles Xavier, personagem branco de origem britânica que fundou os X-Men. No contexto da cena, Pó estava sendo usada como um artifício para mover os planos do vilão Xorn (figura 8).

Figura 7. Pó implorando ao Professor X por ajuda. Fonte: Morrison; Jimenez (2001)

O silenciamento do “Oriente” e a percepção dele como incapaz de falar e agir por si mesmo é questionável e ganha uma conotação ainda pior quando atrelado especificamente à mulher muçulmana. Nos produtos culturais ocidentais, existe um padrão duplo que é constante: as figuras femininas orientais são representadas como submissas e obedientes, enquanto as masculinas são opressivas e/ou violentas. Isso se associa de forma direta ao já mencionado problema da ideia de salvação pelo Ocidente.

Contudo, a realidade é que as mulheres muçulmanas não só falam, como questionam e lutam. Zahra Ali (2016) menciona Aicha e Um Salama, esposas do profeta Muhammad, que questionavam a injustiça de gênero na época do surgimento do Islã. Foi a segunda quem garantiu que a revelação corânica se referisse diretamente às mulheres da mesma forma que fazia aos homens. Séculos depois, feministas islâmicas continuam a enfrentar a opressão patriarcal, muitas especializando-se na sharia (lei islâmica) para tal, argumentando que a igualdade entre os gêneros faz parte do Islã. Reduzi-las à subalternidade serve muito mais à dominação colonial do que a alguma forma de libertação. Libertação que, como lembra Abu-Lughod (2012), não necessariamente precisa estar atrelada às ideias ocidentais ou à vontade ocidental. Essas mulheres, afinal, detêm os próprios desejos e podem escolher por si mesmas o melhor caminho que se adeque à sua realidade social e cultural, o que deve ser, acima de tudo, respeitado.

Considerações finais: o Oriente que existe além

Analisar a trajetória de Sooraya Qadir oferece uma dimensão de como o Orientalismo se manifesta na produção cultural do tempo presente. Mais especificamente, demonstra como o atentado ao World Trade Center renovou o interesse sobre o “Oriente”, levando à construção de uma imagem conveniente para a nova posição ocupada por ele no imaginário ocidental: o alvo da Guerra ao Terror.

Isso nos leva mais uma vez às discussões de Said (2001), em cuja obra reitera o caráter de dominação intrínseco ao Orientalismo. Mais do que apenas um discurso, é uma forma de poder que estabelece uma hierarquia e que se manifesta na política, intelectualidade e cultura. Esse poder não só explica e determina o que são e o que podem fazer os orientais, como distribui tais concepções a partir dos mais diversos meios – desde um texto acadêmico a uma história em quadrinhos –, de modo que passam a ser enxergadas como verdades.

De acordo com Said (2001, p. 59), a sociedade e a cultura só podem ser compreendidas se analisadas juntas. De fato, não há como entender o sentido da criação de Pó sem considerar o contexto histórico em que está situada, da mesma forma que considerar a vasta gama de produções orientalistas feitas após o 11 de setembro oferece um melhor entendimento de como funciona a dinâmica entre o Ocidente e seu Outro no tempo presente.

Diante disso, é necessário ser capaz de enxergar além do “Oriente” que é apresentado no universo das produções culturais ou midiáticas ocidentais. Os afegãos não são terroristas e opressores cuja morte é justificada; as mulheres muçulmanas não são silenciosas e submissas; o Islã não é uma religião opressora às mulheres; nem todo oriental é ou fala árabe; nem todo véu é uma burqa e certamente o “Oriente” não é um grande deserto habitado por bárbaros. Existem culturas e pessoas com histórias ancestrais e complexas que merecem ser vistas e ouvidas.

Referências

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VANDERCLEO COSTA CORREA JUNIOR

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