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OS GOLPES MILITARES NO MIANMAR

Para citar esse texto:

SOARES, Giovanna; JALIL, A; PAES, Luísa. OS GOLPES MILITARES NO MIANMAR. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 12 mar 2021. Disponível em: https://decoloniais.com/os-golpes-militares-no-mianmar/ Acesso em: *inserir data*

No dia 1º de fevereiro de 2021, o pequeno país do sul asiático Mianmar sofreu um golpe de Estado após a vitória do partido Liga Nacional pela Democracia (LND)¹ nas eleições gerais de 2020, a qual lideranças militares e opositores do novo governo acusaram fraude e não reconheceram a legitimidade do pleito. Assim, as Forças Armadas de Mianmar, conhecidas como Tatmadaw, ocuparam os prédios legislativos e declararam estado de emergência.

O recente golpe de Estado sofrido pelo país tem origem em seu precedente histórico, marcado por batalhas políticas internas, assim como intensas guerras com a antiga metrópole durante a sua colonização e o continuísmo de governos militares. Sendo assim, apresentamos abaixo este passado, imprescindível para o conhecimento de o que, afinal, está acontecendo em Mianmar.

A formação do país

Mianmar, também denominado como Birmânia ou Burma, é um país localizado na região da Indochina, trecho que conecta o leste indiano e o sul chinês. É importante destacar que a questão da nomenclatura do país envolve-se em uma disputa política, a qual será abordada ao longo deste texto. Aqui, o país será chamado por ambos os modos, sem que os colaboradores desse texto optem por algum dos termos ou suas concordâncias culturais.

As primeiras cidades-Estados da região foram fundadas pelo povo Pyu, que possuía uma cultura similar à indiana por suas raízes comuns, e tinha como sua religião principal o budismo. Séculos seguiram-se e diferentes povos se estabeleceram na região, até que em meados do século X a população Birmanesa cresceu sua autoridade no território e estendeu seu reino à toda Birmânia. Logo, o primeiro reino unificou quase todo o território e instaurou a primeira dinastia, a Dinastia Pagan, no ano 1044.

O domínio da Dinastia Pagan durou por volta de 250 anos, instituindo sua língua e cultura na região, assim como a prática do budismo teravada. Enquanto esteve no poder, houve constantes conflitos entre as etnias presentes, que viriam a perdurar até os dias atuais. Durante o governo birmanês, os demais povos estavam sob as leis e imposições da Dinastia, enquanto os povos de etnias diferentes da dominante eram mais afetados, os povos Chin, Kachin e Shan, instalados em regiões mais remotas, obtiveram mais independência, conseguindo exercendo seus próprios costumes políticos e sociais. O governo do povo birmanês se estendeu por mais duas dinastias, até o ano de 1886.

Domínio colonial britânico

Britânicos em Mianmar na época colonial

No final do século XIX, os recursos naturais de Mianmar chamaram a atenção do Império Britânico, que já possuía terras indianas próximas. O desejo britânico de se apossar de Burma, por conseguinte, fez-se instaurar a Primeira Guerra Anglo-Birmanesa, em disputa contra a dinastia reinante Konbaung. A guerra durou de 1824 a 1826, tendo como resultado a usurpação de terras costeiras birmanesas. Em 1852, uma nova guerra travada contra o Reino Unido resultou na conquista da Baixa Birmânia e, por fim, na Terceira Guerra Anglo-Birmanesa, ocorrida em 1885, eles anexaram o restante do reino birmanês. No ano seguinte, em 1886, a região tornou-se parte da Índia Britânica.

A colonização inglesa foi responsável por perturbações e violências na organização social birmanesa, por ser indiferente à existência de etnias culturalmente distintas, assim como a presença de diferentes crenças religiosas -hinduístas, muçulmanos e budistas- subjugando-os apenas como um. Como efeito, o senso de identidade no país se torna ainda mais complexo.

O domínio colonial britânico encontra seu fim após a Segunda Guerra Mundial. Devido ao recuo da administração britânica, a Liga Antifascista pela Liberdade Popular (AFPFL)² assume o poder da Birmânia e reivindica a sua independência, finalmente proclamada em janeiro de 1948, após as eleições para a Assembleia Constituinte no ano anterior. Entretanto, o novo Estado independente vê dificuldades, enfrentando instabilidade política e a permanência de conflitos entre minorias e grupos armados que clamavam por direitos há muito negados.

O golpe militar de 1962 e a formação do LND

Nos anos seguintes à independência, Mianmar viveu um breve período de ascensão democrática. Porém, em 1962 ocorreu o primeiro golpe militar. A elite militar que assume o poder opta por disseminar o discurso de que o ato do golpe buscava apenas beneficiar a população. A afirmação ainda encontrou uma oposição discordante, mas apaziguou parte do povo. No entanto, durante a década de 1980, em decorrência da forte crise econômica que afetou o país, o nível de descontentamento com o governo cresce, assim como uma conquista de consciência civil contra a ditadura é disseminada.

Nesse contexto, surge uma protagonista das manifestações contra a ditadura: Aung San Suu Kyi. Nascida em 1945, Suu Kyi acompanhou os momentos de emancipação do país ao lado do pai, Bogyoke Aung San. O revolucionário Bogyoke Aung San fundou o Tatmadaw, criou o Partido Comunista da Birmânia e o Partido Socialista da Birmânia. Considerado o grande herói da independência do Mianmar, Aung San, foi assassinado meses antes do fim do processo. Suu Kyi herdou a influência do pai e o seu envolvimento nos movimentos pró-democracia inflamaram a população. Por sua postura, ela se tornou um dos maiores símbolos do pacifismo e da luta pela democracia. Neste período, as manifestações cresceram de forma expressiva e a resposta militar foi brutal: milhares de pessoas foram mortas e a crise eclodiu de vez no país.

Na mesma época, Suu Kyi assumiu o posto de secretária-geral de um novo partido, a Liga Nacional pela Democracia (LDN). Percorrendo o país em comícios, a presença da ativista incomodou os militares e Suu Kyi foi presa pela primeira vez em 1989. Sua prisão funcionou como um incentivo para as lutas da população e as manifestações continuaram pressionando o regime militar. Em 1991, Suu Kyi foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz. No entanto, é importante destacar que a ativista foi acusada de cooperar com os militares em exercício, além de ter defendido com veemência a mortífera campanha contra os rohingya, um grupo étnico minoritário muçulmano. Posteriormente, em 2019, Suu Kyi representou o país no julgamento do Tribunal Penal Internacional (TPI), defendendo Myanmar das acusações de violência étnica.

A dificultosa situação do governo militar em Mianmar leva os governistas a optar por uma abertura política e a criação de uma nova Constituição para o país, a fim de apaziguar a situação e incentivar o investimento internacional. De acordo com o professor Sebastian Alvarado Fuentes, “essa estratégia era uma forma de manter os militares no poder, mas se ‘disfarçar’ como uma democracia pela visão internacional” (FUENTES, 2021). A partir da Constituição de 1989, o país passa a ser chamado oficialmente de República da União de Mianmar. Entretanto, até os dias atuais, apoiadores de movimentos pró-democracia não reconhecem a autoridade militar e preferem continuar com o nome Birmânia (ou Burma), termo utilizado anteriormente com a mesma origem etimológica.

Em 1990, mesmo depois da criação da Assembleia Nacional e da vitória esmagadora da LDN na primeira eleição, Mianmar ainda estava longe de ser uma democracia. Ocupações estrangeiras, guerrilhas, desastres naturais, denúncias de violação dos direitos humanos e crises financeiras traçaram o caminho que culminou nas ocorrências do ano de 2010, quando o país finalmente decidiu fazer uma nova eleição para o Poder Legislativo, depois de duas décadas. Em fevereiro do ano seguinte, o general reformado Thein Sein foi eleito presidente e o regime militar, por fim, foi dissolvido.

Em novembro de 2011, Aung San Suu Kyi e outros presos políticos do regime militar foram soltos e anistiados. Em 2016, ela assumiu o posto de Conselheira de Estado e se tornou uma das principais figuras da liderança pró-democracia de Mianmar. É importante ressaltar que mesmo com a democracia aparentemente estabelecida, o texto da Constituição em vigência concede às Forças Militares amplos e invulgares direitos: a eles é reservado um quarto dos lugares de deputados no parlamento e cabe ao Chefe do Estado Maior nomear o Ministro da Defesa, assim como os Ministros do Interior e das Fronteiras.

Manifestantes pró-democracia segurando cartazes de Aung San Suu Kyi

Eleições de 2020 e golpe militar de 2021

A popularidade da Conselheira garantiu a vitória do partido LDN nas eleições de 2020. Entretanto, iniciou-se uma campanha de desinformação pelas redes sociais comandadas por integrantes das forças militares. Foi disseminado à população de Burma que as eleições de novembro foram fraudulentas, embora não houvesse nenhum documento comprobatório. Nos últimos meses de 2020, os rumores de que um novo golpe militar estava se arquitetando ganharam força, até que se tornou fato na manhã do dia 1º de fevereiro, quando as tropas Tatmadaw ocuparam os prédios do Senado e do Parlamento. Novamente foi formulado um discurso dos militares estarem agindo pelo bem da população, somado às acusações de fraudes. 

As Forças Armadas encarceraram os parlamentares que não possuíam ligação com os grupos militares, prendendo, inclusive, Suu Kyi. A infraestrutura do país foi rapidamente controlada pela junta militar golpista, que também suspendeu as emissões de televisão e cancelou todos os voos domésticos e internacionais. O acesso a telefones e à internet foi suspenso nas grandes cidades, censurando também os meios midiáticos e redes sociais ainda disponíveis. O mercado de ações e os bancos comerciais foram fechados, e longas filas se formaram diante de caixas eletrônicos em alguns lugares. Em Yangon, o desespero dos moradores se tornou eminente e a população local correu aos supermercados e farmácias na tentativa de armazenar itens básicos.

As décadas já vivenciadas de ditadura militar e suas consequentes crises políticas e financeiras deixaram uma profunda cicatriz na Birmânia, o que fez a população revoltar-se com o novo golpe. Desde o dia 1º de fevereiro, manifestações diárias têm tomado conta das ruas das principais cidades do país, principalmente em Yangon, reunindo milhares de pessoas apesar da atual pandemia. Entre cartazes e camisetas vermelhas -cor característica do partido LND-, os manifestantes marcham entoando frases de não conformismo à condição política imposta, adotando a abordagem não-violenta promovida por Suu Kyi. A resposta da junta militar, entretanto, é de caráter violento, atirando balas de borracha nos manifestantes e fazendo detenções em massa.

Manifestantes pró-democracia usando a “não-violência” para protestar

Assim como ocorreu com a Primavera Árabe³, no começo da década passada, as redes sociais têm sido um espaço comum para os militantes, uma nova maneira de utilizar as plataformas para combinar movimentos e demonstrar a insatisfação social. Como forma de protesto, o grupo de hackers intitulado Myanmar Hackers declarou o apoio à defesa da democracia, assim como à líder Aung San Suu Kyi, atuando em derrubar páginas oficiais e conteúdos considerados como “propaganda militar”. Outra característica das manifestações é a participação jovem, com referências a elementos da cultura pop. Um dos símbolos adotados pelos manifestantes é o gesto usado pela personagem Katniss Everdeen na saga cinematográfica Jogos Vorazes. Nos filmes, a personagem incita a população a se manifestar de maneira silenciosa.

No dia 17 de fevereiro ocorreu a primeira entrevista coletiva concedida à imprensa por aqueles que usurparam o poder. O brigadeiro-general Zaw Min Tun, porta-voz do conselho governante, garantiu que novas eleições serão realizadas e os militares entregarão o governo em breve. No entanto, sem uma data definida, o anúncio de que o estado de emergência duraria um ano faz a população se questionar até quando a ditadura continuará. Ainda, de acordo com o que foi divulgado no pronunciamento, Aung San Suu Kyi está viva, com saúde e mantida em um local seguro.  

Manifestantes pró-democracia segurando cartazes pedindo justiça para Mianmar

No âmbito internacional, o levante militar provocou uma reação em cadeia de condenação pelos países ocidentais. A União Europeia e o Reino Unido não hesitaram em qualificar a ação das Forças Armadas como um golpe e, a Casa Branca, por sua vez, exortou o exército birmanês a reverter seus feitos e ameaçou tomar medidas contra os responsáveis. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu uma nota onde diz acompanhar a situação e espera um rápido retorno do país à normalidade democrática e a preservação do estado de direito. Apesar disso, tampouco referenciou o acontecimento como golpe.

Já o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou que fará tudo ao seu alcance para garantir que a comunidade internacional exerça suficiente pressão sobre Mianmar para que o golpe de Estado tenha seu fim imediato. O Conselho de Direitos Humanos da ONU em reunião decidiu clamar pela soltura de Aung San Suu Kyi, o fim da repressão aos protestos e a suspensão das restrições ao acesso à internet no país. Ainda, Thomas Andrews, o relator oficial das Nações Unidas para a situação de direitos humanos em Mianmar, afirmou que

 […] mesmo antes do golpe militar, o governo e os militares de Mianmar violaram os direitos das pessoas à liberdade de expressão, reunião e associação, e o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Os indivíduos foram privados de direitos por causa de sua etnia e incapazes de obter a cidadania. As forças de segurança de Mianmar se envolveram em prisões arbitrárias, tortura e desaparecimento forçado, assim como no pós-golpe de Mianmar. O próximo governo eleito democraticamente deve lidar com essas violações flagrantes dos direitos humanos.

Nesse sentido, esse texto teve como objetivo apresentar a história colonial de Mianmar e o que está acontecendo atualmente no país. Cabe ressaltar aqui que, como visto, os países tanto do Ocidente como do Oriente, e a própria Organização das Nações Unidas (ONU) não atuaram de forma relevante para defender os direitos da população da Birmânia.

¹ Traduzido do inglês National League for Democracy (NLD).

² Os birmaneses esperavam ganhar o apoio dos japoneses para expulsar os ingleses, de modo que a Birmânia poderia tornar-se independente. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão invadiu a Birmânia, e declarou o país nominalmente independente, o Estado da Birmânia, em 1 de agosto de 1943. Um governo fantoche liderado por Ba Maw foi instalado. Aung San, pai do líder oposicionista Aung San Suu Kyi, líderes nacionalistas formaram a Organização Anti-Fascista- mais tarde renomeada Liga Popular Anti-Fascista da Liberdade-, que pediu à Grã-Bretanha para formar uma coalizão com outros aliados contra os japoneses. Em abril de 1945, os Aliados tinham expulsado os japoneses. Em seguida, iniciaram as negociações entre os birmaneses e os ingleses pela independência.

³ Primavera Árabe foi uma onda revolucionária de manifestações e protestos que ocorreram no Oriente Médio e no Norte da África, caracterizada pela luta por democracia e por melhores condições de vida decorrentes da crise econômica, desemprego e falta de liberdade de expressão.

Referências

G1. Militares tomam o controle do poder em Mianmar e acusam “fraude eleitoral”; lideranças do governo são presas. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/01/31/liderancas-politicas-de-mianmar-sao-presas.ghtml>. Acesso em: 12 Mar. 2021.

DEFENSE LANGUAGE INSTITUTE FOREIGN LANGUAGE CENTER. Burma in Perspective: An Orientation Guide. Technology Integration Division. 2013. Disponível em: <https://fieldsupport.dliflc.edu/products/cip/burma/burma.pdf>. Acesso em: 11 Ma. 2021.

CIA. Explore All Countries: Burma. US Government. 2021. Disponível em: <https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/burma/>. Acesso em: 11 Mar. 2021.

DIAZ, Luccas. Mianmar: entenda o golpe de Estado e a história do país. Guia do Estudante. 2021. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/entenda-o-que-esta-acontecendo-no-myanmar/>. Acesso em: 9 Mar. 2021.

ANDREWS, Thomas H. Report of the Special Rapporteur on the situation of human rights in Myanmas, Thomas H. Andrews. In: Human Rights Council Forty-sixth session, Agenda item 3. 2021. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session46/Documents/A_HRC_46_56.pdf>. Acesso em: 10 Mar. 2021.

VIDAL LIY, Macarena. Golpe em Mianmar é desafio para os EUA e oportunidade para a China. EL PAÍS. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-02-03/golpe-em-mianmar-e-desafio-para-os-eua-e-oportunidade-para-a-china.html>. Acesso em: 9 Mar. 2021.

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