Para citar esse texto:
MOTTA, Victoria. O QUE A FRANÇA ESTÁ FAZENDO NO MALI? Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 06 out 2020. Disponível em: https://decoloniais.com/o-que-a-franca-esta-fazendo-no-mali/ Acesso em: *inserir data*
Os últimos acontecimentos no Mali aumentaram a visibilidade do país e colocaram em cheque novamente as ações do governo francês na região, que atua em missões militares para o combate do terrorismo e da violência extrema, como as Operações Serval (2013-2014) e Barkhane (2014-). Mas qual é o interesse francês na África Ocidental, de um modo geral, e no Mali, especificamente? É importante considerar a riqueza de recursos naturais na região (especialmente ouro e urânio no Mali), bem como o projeto de conter ameaças “lá fora” antes de elas chegarem à sua porta, visto que o território francês está se tornando alvo de ataques terroristas. Assim, estamos vendo um neocolonialismo francês no Mali?
Nesse sentido, defendido abertamente por alguns e não tão abertamente por outros, há um argumento popular de que a posição de poder e prestígio da França esteja diretamente atrelada à manutenção de sua influência no continente africano. As frases abaixo, supostamente ditas por importantes personalidades políticas francesas, buscam ilustrar essa visão:
“Without Africa, France will have no history in the 21st century.”
Sem a África, a França não terá história no século 21.
— François Mitterrand, 1957
“Without Africa, France will slide down into the rank of a third [world] power.”
Sem a África, a França decairá para uma potência de Terceiro Mundo.
— Jacques Chirac, 2008
“France, along with Europe, would like to be even more involved in the destiny of [Africa]…”
A França, junto com a Europa, gostaria de se envolver ainda mais com o destino da África…
— François Hollande, 2013
“I am of a generation that doesn’t tell Africans what to do.”
Eu sou de uma geração que não diz aos africanos o que eles devem fazer.
— Emmanuel Macron, 2017
Isso se manifesta em práticas como uma forte influência econômica por meio de parcerias (e exclusividades) que relembram o pacto colonial entre uma metrópole e uma colônia. Outro exemplo de políticas francesas pós-independência é a manutenção de sua presença militar no continente africano, que possibilita o pronto emprego de forças francesas para defender os interesses de seu país na região. Ambos os casos foram “conquistados” a partir de acordos entre ex-metrópole e suas ex-colônias, reiterando as hierarquias coloniais apesar da independência formal.
A partir disso, em 2013, o governo francês enviou tropas para a região a fim de impedir que grupos armados cheguem a Bamako (capital do Mali) e restaurar a integridade territorial do país, já que uma coalizão de “rebeldes” assumira o controle de metade do território do Mali. Essa intervenção na nação da África Ocidental foi interpretada mais como uma luta para salvar não a África, mas a “França”. Posteriormente, a Operação Serval (trocando de nome para Barkhane em 2014) impulsionou a Organização das Nações Unidas (ONU) a criar a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali (MINUSMA).
Pretendendo ser imparcial na sua busca pela “paz” e, no caso específico do Mali, no combate ao terrorismo e violência extrema, os capacetes azuis (tropas militares de países contribuintes atuando sob bandeira da ONU) estão se deparando com a missão de paz mais violenta da atualidade. A própria ONU chama atenção para o número desproporcional de mortes que ocorrem na missão do Mali em detrimento das outras missões de alto engajamento, como as que atuam na República Democrática do Congo e a República Centro Africana atualmente, por exemplo. Como a segunda missão mais recente da ONU (criada em 2013), a MINUSMA está no quarto lugar no maior número de mortes por missão de paz da ONU. Mas o que torna o Mali tão mortífero?
Vista como o “laboratório da ONU” para explorar uma doutrina mais pró-ativa de missões de paz, a MINUSMA, na verdade, aponta uma total divergência dos valores das Operações de Paz da ONU (imparcialidade, uso mínimo da força e consentimento do Estado-anfitrião). Fugindo de um passado de inação (como os acontecimentos no contexto do genocídio de Ruanda em 1994), a ONU vem buscando um aumento de sua “legitimidade” e “eficiência” na “manutenção da paz e segurança internacional” (um dos seus principais norteadores, presentes na sua carta fundacional).
Esse contexto abriu espaço para missões de “estabilização”, o “S” no acrônimo da MINUSMA, que distorcem ainda mais o propósito imparcial das Operações de Paz da ONU a partir dos interesses do Ocidente. Foca-se, desse modo, em uma doutrina à la OTAN de estabilização, construída a partir de intervenções nos Bálcãs na década de 1990 e consolidada na Guerra global Contra o Terror. Assim, países da OTAN como Estados Unidos, Reino Unido e França, também membros permanentes do Conselho de Segurança que detêm o direito de veto, estão advogando em prol de missões mais agressivas no terreno que “vão atrás” das fontes de “instabilidade” e “neutralizam” grupos considerados “rebeldes”, valorizando uma relação com o Estado-anfitrião (e fechando os olhos para violações de Direitos Humanos deste).
Ainda há um agravante, a França tradicionalmente atua na redação dos mandatos das Operações de Paz, documento que aponta os objetivos da missão, podendo inserir sua própria percepção de paz. Nota-se, portanto, um deslocamento de valores como a primazia de soluções políticas, sendo substituído pela maior operacionalização dos interesses ocidentais, especificamente franceses, no terreno.
Nessa perspectiva, vemos que o governo francês reluta em deixar o Mali, chegando ao ponto de reformular e mascarar seus interesses para permanecer na região. Com o quarto golpe militar no Mali pós-independência e a afirmativa do governo Macron pela continuidade da Operação Barkhane, independentemente de possíveis desavenças com o novo governo, devemos refletir: até quando o Mali continuará sendo palco de práticas coloniais?