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NOTICIANDO “CATÁSTROFES”: A INVISIBILIZAÇÃO DOS PROBLEMAS DO SUL GLOBAL

Para citar esse texto:

MONTEIRO, Daniela; MOTTA, Victoria. NOTICIANDO “CATÁSTROFES”: A INVISIBILIZAÇÃO DOS PROBLEMAS DO SUL GLOBAL. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 14 ago 2021.  Disponível em: https://decoloniais.com/noticiando-catastrofes-a-invisibilizacao-dos-problemas-do-sul-global/ Acesso em: *inserir data*

É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, os oceanos e a terra. Mudanças rápidas e difusas já ocorrem na atmosfera, oceanos, criosfera e biosfera (IPCC, 2021, tradução nossa)

It is unequivocal that human influence has warmed the atmosphere, ocean and land. Widespread and rapid changes in the atmosphere, ocean, cryosphere and biosphere have occurred. (IPCC, 2021). p. 9)

Essa citação é retirada do relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) avaliando o impacto humano no clima global. Diferentemente de edições anteriores, esse documento chama atenção para novas evidências e certezas que nos permitem visualizar possíveis cenários futuros com mais clareza, a curto e longo prazo, e os desafios que atingirão o mundo como um todo. O ano de 2020 demonstrou intensidade nos indicadores de mudanças climáticas, e agravados com a situação da COVID-19, é possível observar maiores mudanças nos padrões de 2021, e que essas já vem impactando intensamente a vida de várias pessoas de diferentes países do Sul Global.

Além das temperaturas extremas – o calor no hemisfério Norte e o frio no Sul – outro efeito preocupante é o impacto no volume pluviométrico, de modo que chuvas e enchentes atingiram alguns locais de modo incomum: parte da Europa, China continental, a Turquia, e essa semana o norte da Argentina. Contudo, a recente “catástrofe climática” ocorrida na Alemanha recentemente recebeu uma atenção especial da mídia. Não é só a forma na qual esses eventos são retratados pelos veículos de informação, vale apontar que os próprios cidadãos alemães adotam esse duplo padrão sem questioná-lo, como uma entrevistada pela Deutsche Welle, emissora alemã, que afirmou:

Você não espera que as pessoas morram em uma enchente na Alemanha. Você espera talvez em países pobres, mas não se espera aqui (tradução nossa).

You don’t expect people to die in a flood in Germany. You expect it maybe in poor countries, but you don’t expect it here.

Este texto tem como objetivo, portanto, propor um debate sobre o tratamento diferenciado recebido por esses casos. Assim, por que se espera (e não choca) que as mortes, desastres, e ausência de respostas adequadas aconteçam somente em países mais pobres, quando há efeitos globais causados e perpetuados majoritariamente pelos mais ricos? Entendemos que o ônus climático recai sobre países em desenvolvimento, mas como isso é visualizado e entendido a partir da mídia nesses países? Como o enquadramento desigual dessas notícias reiteram narrativas hierárquicas entre o Norte e o Sul?

Em primeiro lugar, é importante discutir o papel da mídia. A partir de Shome (2016), entendemos que esse ator político entra na discussão sobre pós-colonialismo e mídia, já que media o acesso do público geral à (des)informação e detém o potencial de direcionar a atenção. Especificamente sobre as mudanças climáticas, a mídia é determinante para se fazer política porque, dependendo de como os eventos são noticiados, pode haver uma maior resposta governamental, por exemplo. Nesse sentido, nossa reflexão está preocupada com o enquadramento (em inglês, framing), ou seja, o que se escolhe ser noticiado e o que é invisibilizado, e como essas escolhas refletem uma narrativa política que retrata essas enchentes e suas consequências no cotidiano da população desses países de forma diferenciada. 

Com a ajuda da mídia, há um processo de normalização ou banalização de muitas das questões envolvendo países do Sul, traçando a narrativa de eventos noticiados como menos urgentes, especialmente no caso de eventos proporcionados pela crescente interferência humana no clima. Esse processo tem como consequência a construção de um eco-colonialismo (UDDIN, 2017), somado aos riscos de sucumbir a agenda de países mais ricos, de modo que certos eventos são retratados de acordo com a qualificação de importância dos países do Norte Global e que o Sul não possui os mesmos termos ao descrever eventos similares. O que buscamos apontar é que a gramática proveniente, de “crise” e “catástrofe” desses eventos “atípicos” no Norte são parte de um processo maior, em que é necessária a ligação a eventos passados, de modo a construir a linearidade e escalonamento do que se intensificou a partir de 1950 – sem esse entendimento de passado não é possível observar as mudanças presentes e futuras. 

A partir de um panorama dos embates dicotômicos na área climática entre os interesses Norte-Sul, um argumento a ser apresentado (UDDIN, 2017) é de como os países mais desenvolvidos possuem maiores capacidades econômicas, tecnológicas e políticas que os demais, é de se esperar que eles sejam os que melhor se adaptarão às mudanças climáticas, principalmente em países europeus, onde se iniciou a produção industrial. Isto, somado a vulnerabilidades encontradas nos países em desenvolvimento, seja pelas particularidades e dificuldades humanas em seus ecossistemas (perda de biodiversidade, escassez de água em locais áridos, sensibilidade da vida marinha, entre outros), seja pela desigualdade econômica estrutural decorrida do colonialismo; gera a expectativa de que o desastre no Sul é iminente e sem possibilidade de contenção, mas quando algo semelhante acontece no Norte, como na Alemanha, a narração midiática assume uma postura mais relacionada à gramática de “tragédia”.

Em segundo lugar, é necessário apresentar as situações sobre as quais este trabalho se debruça. Nos últimos dois meses, tivemos chuvas e tempestades intensas que resultaram em enchentes ou se transformaram em desastres maiores. Na região europeia, as chuvas atingiram com força a Alemanha e Bélgica, criando as piores enchentes há 500 anos, que resultaram em 205 mortes. O “inimaginável” aconteceu, e as mudanças climáticas chegaram criar um desastre na Alemanha, não “apenas” mudando a temperatura, mas causando de fato destruição.

Além desse caso emblemático de quando se sentiu a chegada das consequências climáticas na Europa, que tanto contribuiu (e contribui) para o nível de emissões atuais, no Sul Global puderam ser vistas três tempestades e enchentes que surpreenderam, porém que não foram relatadas da mesma maneira: na China, Turquia e, mais recentemente, na Argentina. As três ocorreram de modo “atípico” e “intenso” para a época do ano, principalmente as chuvas torrenciais que ocorreram no território chinês: os níveis pluviométricos em dois dias foram equivalentes à média de um ano inteiro de chuvas. Outra estranheza de eventos foi a crise hídrica do Rio Paraná, uma seca que atinge Brasil e Argentina, simultaneamente, com chuvas fortes e enchentes no norte do território argentino.

Destacamos ainda algumas questões a partir da comparação entre o caso alemão e os demais. As reportagens do caso chinês posicionam o fenômeno como uma exceção, porém não dando uma qualificação tão alarmante quanto o alemão. Tampouco são mencionadas as iniciativas de reparação dos danos pelo governo, apenas a irresponsabilidade governamental frente às chuvas, em seguida, as notícias sobre a situação da China chamam atenção ao prejuízo econômico direto de 1,11 bilhão de yuans (R$ 978,8 milhões). 

Já o caso europeu, que ganha maior visibilidade midiática, adota uma linguagem de “catástrofe” para em seguida focar nas devastações e nas iniciativas governamentais e comunitárias de resposta. No momento, o que mais se noticia sobre o caso é o plano de restauração da região, através de um fundo de  €30 bi (R$ 185 bi), como um sinal de solidariedade nacional. Somente foi discutida uma atribuição de responsabilidade governamental pelo desastre no caso alemão ao ter um planejamento apresentado para a década seguinte; em todas as outras instâncias, a “catástrofe” foi entendida como surpreendente e inevitável.

As duas outras tempestades não tiveram grande visibilidade na mídia e também não tiveram grandes impactos econômicos como as anteriores, porém ambas ocorreram de modo atípico e estão relacionadas a diferentes fenômenos e consequências das mudanças climáticas. Apesar disso, as reportagens tanto sobre a Turquia quanto sobre a Argentina falham em apontar essas alterações regionais do clima como sintomas de algo maior. As chuvas na Turquia, por exemplo, normalmente não se concentram a ponto de causarem enchentes, e pouco foi relatado sobre os danos de infraestrutura sofridos e o estado emergencial no distrito de Arhavi.

Como último caso a ser abordado, a tempestade argentina deixou algumas cidades da região nortenha sem eletricidade e um número considerável de pessoas feridas por granizo, entretanto, as consequências da enchente não foram muito noticiadas fora do país. Além disso, não foram feitas menções a esse fenômeno intenso no inverno, que se agravou devido a presença da La Niña e pelas alterações climáticas no próprio território brasileiro, que propiciaram a formação de mais tempestades na região. A invisibilização desse tema, inclusive na mídia brasileira, é preocupante tendo em vista que dias depois nossa região Sul recebeu parte dessa tempestade.

Outro fator importante é a criação do personagem que se preocupa com os efeitos do impacto humano no clima. Mesmo que essas enchentes causadas por tempestades mais fortes e fora de época tenham impactado diferentes países em um curto período de tempo e causado mortes e perdas econômicas, ainda há um retrato de que as pessoas “verdadeiramente” preocupadas com as mudanças climáticas são as privilegiadas e caucasianas. Apesar da maior visibilidade de símbolos ativistas ambientais do Norte Global, foram as populações em maior situação de vulnerabilidade no Sul as primeiras na linha de frente do ativismo ambiental, desde populações indígenas, aborígenes e nativas até comunidades do continente africano, lutando pela preservação de ecossistemas, modos de vida e de conhecimento e de um futuro. Esses corpos e esse luto, porém, se tornam marginais dentro de uma construção de que são os mais privilegiados que compõem a vanguarda.

Assim, a mídia cria um cenário de choque e luto direcionado ao caso alemão que não se estende na mesma medida aos demais países. Aqui, é importante pontuar que não buscamos comparar os danos causados em cada situação, dizendo que em um há uma maior perda do que em outra, mas demonstrar o impacto do enquadramento midiático na (re)produção de imaginários sobre o Norte e o Sul. Judith Butler (2015), ao refletir sobre as mortes nos Estados Unidos no 11 de setembro em comparação às causadas pelas “guerras de vingança” estadunidenses no Iraque e no Afeganistão, propõe um debate sobre as “vidas choráveis”, as vidas de pessoas que, quando morrem, são passíveis de luto.

Mas, afinal, o que significa enquadrar uma vida como digna, mais digna ou não digna de luto? A filósofa entra em uma discussão sobre linguagem e o próprio entendimento que temos sobre a palavra “vida” para argumentar que, se, por um lado, estamos unificados enquanto iguais já que todos vamos morrer, por outro, as condições de vida (e de morte) são variadas por conta da desigualdade social (BUTLER, 2015). A vulnerabilidade diferenciada, dessa forma, também implica na “surpresa” quando a morte chega e no questionamento de que, se algumas mortes não chocam, essas pessoas realmente tinham uma “vida” para além da existência física?

Nessa perspectiva, Shome (2016) postula que a própria lógica de funcionamento da mídia está historicamente relacionada à manutenção da hierarquia pós-colonial. Com a questão do enquadramento, observamos que as notícias que relatam eventos no Norte focam na discussão das mudanças climáticas e no papel do governo na reconstrução de seu país após as tempestades, mas, quando se trata de narrar os eventos do Sul, o padrão é outro. Ademais, é importante considerar os próprios silêncios que são produzidos na escolha editorial. Ao criar personagens como os retratados acima, as mídias acabam narrando uma versão específica da complexa dinâmica política por trás de temas como ativismo ambiental e responsabilização sobre o problema das mudanças climáticas.

Desse modo, nossa reflexão buscou apontar diferenças sobre o tratamento de um mesmo tipo de evento climático mais ou menos na mesma época, a partir de casos no Norte e no Sul Global, e como isso está relacionado à perpetuação de discursos que postulam hierarquização entre (ex)metrópoles e (ex)colônias. Dentro dessa seleção de casos, ocorreu uma tentativa de procurar pelos eventos de cada país sem mencionar “mudanças climáticas” no sistema de pesquisa, de modo a analisar se, quando e como isso se traduzia no texto. Esse cuidado foi realizado procurando em navegadores de internet com a opção anônima, para não ocorrer uma influência baseada em dados pessoais tanto por resultados em português quanto em inglês. Assim, pretendia-se observar também qual a qualidade do que foi noticiado e que era recomendado em ordem de exibição, a partir de buscas simples.

É igualmente importante mencionar que tomamos como fonte um pequeno pedaço da mídia, algumas notícias de jornais online em formatos tradicionais, entretanto, é também possível ver como são realizados esses framings a partir de diferentes bandeiras Norte-Sul nas redes sociais, por exemplo. Dentre várias possibilidades, compreendemos que nosso questionamento se torna cada vez mais necessário, tendo em vista a velocidade das mudanças climáticas e a janela de tempo para realizar transformações estruturais na sociedade. Sendo assim, como podemos continuar a contribuir para o debate?

Referências

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CAMPBELL, M. ‘The Global South is not on the front page, but it is on the front line’: Meet Vanessa Nakate. EuroNews.Green, UE, 22 out. 2020. Disponível em: https://www.euronews.com/green/2020/10/22/vanessa-nakate-the-global-south-is-not-on-the-front-page-but-it-is-on-the-front-line

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