Para citar esse texto:
TAVARES, Poliana. LUGAR DE NEGRO: A POPULAÇÃO AFRODESCENDENTE SOB A PERSPECTIVA DE LÉLIA GONZALEZ (1935-1994). Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 18 maio 2023. Disponível em: https://decoloniais.com/lugar-de-negro-a-populacao-afrodescendente-sob-a-perspectiva-de-lelia-gonzalez-1935-1994/ Acesso em: *inserir data*
Introdução
Lélia de Almeida, ou Lélia Gonzalez, nasceu em 1º de fevereiro de 1935 em Belo Horizonte – Minas Gerais, e faleceu em 1994 no Rio de Janeiro (RJ). É filha de Urcinda Serafim de Almeida, uma trabalhadora doméstica indígena e analfabeta, e de Joaquim Acácio de Almeida, um ferroviário negro. É a décima sétima do total de dezoito filhos do casal. Foi uma intelectual, ativista, professora, feminista e figura pública nacional e internacional.
Mesmo após quase trinta anos do falecimento de Lélia, reconhecemos a importância de discutir a situação da população negra no Brasil sob sua perspectiva. Foi uma intelectual que rompeu com o ideário de “lugar de negro”, configurando-se como exceção à regra. Com impressionante carreira acadêmica, concluiu seus estudos, nível básico e superior, e participou ativamente das lutas dos movimentos sociais cujas temáticas englobam racismo, sexismo e estratificação social.
Após a perda da mãe e do marido e sofrer na pele as inúmeras discriminações, Lélia compreendeu o papel que era imposto aos negros na sociedade brasileira. Foi a partir dos 40 anos de idade que passou a construir sua identidade racial e analisar a luta do movimento negro principalmente nos aspectos políticos, fazendo assim uma convergência entre o pessoal, o cultural e o político.
A identidade de Lélia Gonzalez se construiu falando, debatendo e escrevendo sobre temas ligados a negros, mulheres, racismo e sexismo. Ainda que possuísse notável conhecimento acadêmico, optou por adotar palavras e expressões populares em suas falas para que, dessa forma, sua ideia fosse acessível a todos. Para Lélia, a população brasileira é multi-dialetal, ou seja, a depender da região e da territorialidade, são produzidos dialetos próprios para comunicação entre si – principalmente considerando a utilização de termos advindos do continente africano e sua mescla com a língua indígena (devido a variação da composição étnica e racial, urbana e rural, etc.) e negra por excelência.
Este breve estudo se propõe a analisar a sociedade brasileira a partir do entendimento de Lélia Gonzalez e a sua crítica ao pré-determinado “lugar de negro”. Para se atingir esse objetivo, é necessário discorrer sobre suas principais conclusões acerca da identidade afro-latino-americana. Nesse sentido, é primordial compreender: 1) a relação entre a população negra e o Estado durante o período de ditadura civil-militar no Brasil; 2) as categorias de análise cunhadas pela autora; 3) os aspectos interseccionais que perpassam as lutas dos movimentos sociais no país; 3) de que maneira a população afrodescendente é inserida nas organizações política, social e econômica do país e, por fim, 4) as interpretações acerca do lugar de negro na sociedade brasileira sob a interpretação de Lélia Gonzalez.
Nuances do Brasil Negro: Democracia, poder para quem?
Tendo como principal objetivo analisar a população afrodescendente sob a perspectiva de Lélia Gonzalez, convém retratar sua trajetória enquanto militante durante o período de repressão às reivindicações populares. A ditadura civil-militar instaurada no Brasil se configurou como período de sucessivas repressões dos direitos sociais e culturais, bem como sistemáticas violações dos direitos humanos. Nesse período, com a exportação de ideias das quais Lélia era totalmente contrária, principalmente a do mito da democracia racial, é imprescindível retratar aqui a sua relação com os movimentos sociais e o lugar destinado à população negra nesse período histórico nacional.
Lélia Gonzalez foi responsável por analisar e interpretar o movimento negro no Brasil no final dos anos 1970, quando ainda vigorava o regime militar. A autora classifica o momento de ditadura militar como tempos de silenciamento e repressão política a ferro e fogo dos setores populares e de suas representações. As organizações e entidades de ativismo questionavam constantemente a visão hegemônica de democracia racial e sobreviviam sob forte repressão no país, angariavam reprovações e até ameaças por parte de outros setores da sociedade (Gonzalez; Hasenbalg, 2022).
A recorrência do racismo na sociedade é passível de análise porque, mesmo depois da abolição em 1888, ainda não havia leis que criminalizavam a discriminação racial. Ratts e Rios (2010, p. 87) mencionam que, em tempos de ditadura, “qualquer denúncia de racismo era recebida como tentativa de criar sentimentos antinacionais. Falar de racismo significava dar vida àquilo que ‘não existia’ na sociedade brasileira”. Dessa maneira, a população negra sofreu com práticas sistemáticas de rejeição em espaços públicos, bem como em locais destinados ao lazer e também no mercado de trabalho. A partir disso, essa premissa foi debatida por Lélia durante sua trajetória política enquanto professora e figura pública e também pelo movimento negro.
Por volta de 1978, as manifestações de movimentos sociais nas capitais do Brasil foram recorrentes. Lélia enquanto diretora executiva do Movimento Negro Unificado (MNU) se viu trabalhando em prol da formação política de ativistas, que, sob os olhares de agentes secretos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) – Órgão de repressão aos movimentos sociais e populares, também centro de tortura durante o regime militar -, atuaram de forma positiva no sentido de mobilizar a sociedade e expandir a questão negra para diversos setores, ampliando a questão nos âmbitos culturais, políticos e sociais. De acordo com Ratts e Rios (2010, p. 85), os atos públicos, passeatas e marchas expressaram a essência da luta contra o racismo de “uma nação que construíra sua autoimagem negando a existência do preconceito racial”.
Para além das atividades desempenhadas por movimentos sociais em atos públicos, no campo acadêmico também houve diversas manifestações sobre a ideologia de democracia racial empregada por estudiosos brasileiros endossadas pelo Estado. Lélia e outros intelectuais da academia apresentaram pesquisas e textos confrontando esse discurso e evidenciando a realidade social e econômica do país quanto à população negra, citando-se os estudos de Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes. Para esse último, os negros eram “privados de uma real integração na vida moderna do país devido à persistência do preconceito de cor na sociedade” (Ratts; Rios, 2010, p. 88).
Já no processo de redemocratização, entre 1978 e 1985, fizeram-se presentes nas ruas e praças das capitais brasileiras as manifestações reivindicando a anistia, as eleições diretas e outras pautas de garantia de direitos estudantis e populares. Mesmo sob repressão militar, os movimentos sociais atuaram em diversos momentos em defesa da melhoria das condições de vida da população afrodescendente (Ratts; Rios, 2010, p. 93).
Nota-se a importância de intelectuais brasileiros que traduzam de fato a realidade social, política e econômica do país. Menciona-se ainda a luta dos movimentos sociais, tais como o movimento negro evidenciado pelo MNU, que, em uma de suas declarações públicas no ano de 1978, aponta que:
[…] jogado nas favelas, cortiços, alagados e invasões, empurrado para a marginalidade, a prostituição, a mendicância, os presídios, o desemprego e o subemprego, tendo sobre si, ainda, o peso desumano da violência e repressão policial. Por isto, mantendo o espírito de luta dos quilombos, gritamos contra a situação de exploração a que estamos submetidos, lutando contra o racismo e toda e qualquer forma de opressão existente na sociedade brasileira, e pela mobilização e organização da comunidade, visando uma real emancipação política, econômica, social e cultural (Gonzalez; Hasenbalg, 2022, p. 74).
Esse trecho sintetiza a luta do MNU – apoiada por Lélia – em prol dos direitos da população negra brasileira, considerando as negligências do Estado e a necessidade de implementação de políticas públicas e leis que mitigassem as desigualdades sociais e raciais, contra as formas de repressão estatais racistas e a oferta de melhores condições de vida e dignidade para os afrodescendentes.
Imbuída da crítica à sociedade racista e à inação do Estado, Lélia viu na carreira política uma forma de tentar contribuir com a visibilidade das pautas raciais no campo legislativo. Apesar de apoiada pelos movimentos negro, de feministas e de favelas, nas candidaturas para deputada federal (1982) e deputada estadual (1986), não foi eleita. Tecia duras críticas aos partidos políticos os quais se filiou devido à invisibilização de pautas sociais principalmente nos partidos ditos de esquerda, se frustrou inúmeras vezes. O machismo e o sexismo nos espaços políticos, além da inconformação com o modelo governamental pautado omissão das causas da população negra, das organizações de mulheres e dos direitos da comunidade LGBTQIA+ fez com que Lélia abandonasse a carreira política.
De acordo com Ratts e Rios (2010, p. 120), inconformada com a falta de menção às questões sociais, raciais e de gênero nas pautas dos partidos políticos, Lélia definiu a prática como racismo por omissão e traduziu a apresentação dos partidos como ‘um sonho europeizante e europeu’ que omitia a questão do racismo e sua relação com a superioridade cultural, pois, em campanha não se fez menção ao ‘crioléu, mulherio e indiada’ do país.
Levando em consideração que, apesar de não haver consenso sobre o termo democracia e suas definições serem muito mais complexas, tomando como princípio de democracia, grosso modo, o poder ao povo, convém-nos questionar: quem é esse povo que detém poder? Nos aspectos analisados nessa seção, nota-se a repressão de lutas destinadas à justiça social nos diferentes momentos históricos do país; uma abolição sem políticas de inserção da população negra na sociedade, a repressão de lutas e reivindicações por demandas de populações específicas; as violações de direitos fundamentais; e ainda, o período de redemocratização que não tem como pauta políticas de reparação e/ou mitigação das desigualdades raciais.
Essas são questões que nos fazem refletir sobre o lugar do negro na sociedade. Se considerarmos a perspectiva de Lélia Gonzalez, faz-se necessário analisar os diversos aspectos, categorias, intersecções e inserções das questões no campo científico. Para tanto, a autora utiliza-se da psicanálise (principalmente Freud e Lacan) para identificar e interpretar as realidades da população nacional, bem como da América Latina e Caribe.
Categorias de análise
No intuito de compreender a identidade própria dos afrodescendentes da América Latina, Lélia se propôs a elaborar algumas categorias de análise que nos permitem entender melhor a construção da identidade da população negra no continente americano e também no Caribe. Viajou pelo Brasil e pelo exterior com o objetivo de mobilizar ativistas e jovens estudantes negros sobre as pautas defendidas pelo MNU. Suas palestras evidenciavam suas experiências e a necessidade de se construir uma identidade negra de resistência contra o racismo, a discriminação, o sexismo e o reconhecimento da cultura afro para o desenvolvimento social, cultural e econômico do país.
Essas ideias também foram defendidas em âmbito internacional, principalmente em suas viagens aos Estados Unidos – onde fazia questão de falar inglês pois “preferia batalhar e errar antes de correr o risco de ver suas palavras mal interpretadas” (Ratts; Rios, 2010, p. 133) -, também a alguns países do continente africano, aos caribenhos e da diáspora. Conforme os estudos de Ratts e Rios (2010), era comum que Lélia prolongasse as visitas a fim de aproveitar as oportunidades, as redes, o apoio e ampliar suas visões culturais e políticas, sendo reconhecida por muitos como antropóloga devido a essas observações e constatações.
Em contrapartida, levava aos outros países as demandas das classes sociais e raciais existentes no Brasil mesmo em meio ao período ditatorial, contribuindo para expansão de estudos sobre a realidade da população afro-brasileira e contrariando inclusive o mito da democracia racial que era exportado por estudiosos do país. As viagens também a possibilitaram desenvolver o conceito de amefricanidade, bem como a ideia de um feminismo negro transnacional e a articulação de correntes do pensamento negro na diáspora contrários ao colonialismo – sob influência de intelectuais como Aimé Césaire e Frantz Fanon (Cardoso, 2014, p. 968).
A partir de análises psicanalíticas sobre a construção cultural e social da região com base em aspectos da cultura africana e suas singularidades, Lélia cunhou a ideia de uma América Africana, ou Améfrica Ladina. Nessa perspectiva, reflete sobre a especificidade da cultura brasileira e de outras culturas latino-americanas, evidenciando as divergências e particularidades que os diferenciam da cultura europeia, evocando uma ideia de uma incontestável latinidade (Ratts; Rios, 2010, p. 62). Amefricanidade é defendida por Lélia (2018, p. 25) como uma categoria político-cultural e representa a semelhança entre as diversas manifestações culturais praticadas nas Américas que, para ela, resgatam a dinâmica cultural da herança africana. A ideia de amefricanidade representa uma forma de perpetuação da identidade afro na reprodução de conhecimentos passados entre as gerações e de resistência à subversão negra aos códigos da cultura dominante (religião, língua, vestuário, etc).
Como categoria de resistência política-ideológica, Lélia (2019b, p. 356) também critica a passividade do continente americano ao imperialismo estadunidense. Quando os Estados Unidos (EUA) se auto intitulam “américa” e os afrodescendentes se autodenominam afro-americanos e africano-americanos, se têm a ideia de que só nos EUA existem negros, e não no continente como um todo.
Em síntese, para Lélia (2019b, p. 357, grifo no original), o termo amefricanidade permite:
ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: a AMÉRICA como um todo (Sul, Central, Norte e insular) para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora um processo histórico de intensa dinâmica cultural.
Dessa maneira, Lélia questiona a existência e representação dos demais países da América do Sul, América Central, insular e do Norte, além do Caribe. Sendo assim, na tentativa de romper com as categorias estritamente imperialistas, Lélia propõe utilizar a categoria denominada amefricanidade.
Lélia utiliza como suporte epistemológico as contribuições da psicanálise, principalmente com as ideias de Freud e posteriormente de Lacan, sobre o ato de fala. Para a autora, a lógica da dominação tenta (e muitas vezes consegue) domesticar o povo negro e cercear seu direito de fala. Quando o negro ousa falar, assume as inúmeros riscos, cita-se o do racismo, do silenciamento e o da infantilização. Nessa perspectiva, eles não têm voz, não têm fala própria, são comparados a crianças que precisam que os adultos digam por tais (Gonzalez, 2019a).
O constante contato entre as manifestações culturais e a forte influência dos dialetos africanos modificando o espanhol, o inglês e o francês falados na região da América Latina e Caribe destacam a inegável presença negra no continente. Para Lélia, a alteração e africanização do português falado no Brasil pode ser denominada como pretuguês. Em síntese:
O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (como o l ou o r, por exemplo), aponta para um aspecto pouco explorado na influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (Gonzalez, 2019b, p. 350).
Nesse sentido, a estratégia de africanizar a língua portuguesa trazendo como conceito o pretuguês representa ainda uma forma de ressignificação de negros e indígenas demonstrada a partir da realidade colonial, onde as mães-pretas exerciam uma forma de resistência passiva (Gonzalez, 2018, p. 23).
As mães-pretas eram responsáveis por desempenhar a função materna, logo, os cuidados com alimentação, higiene e lazer eram de sua responsabilidade. Lélia retrata a criança como a cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês. Nesse sentido, a internalização de histórias, culturas, valores e a linguagem era passada das mulheres negras para as crianças e isso representa uma forma de dar visibilidade ao imaginário afro (Gonzalez, 2019a, p. 19). De maneira consciente ou não, visível ou oculta, as manifestações culturais brasileiras revelam as marcas da africanidade existentes no país.
Gonzalez (2019b, p. 350) evidencia que além do âmbito da linguagem, as influências africanas podem ser observadas também nas músicas, danças, crenças, entre outras. Essas similaridades tendem a ser retratadas nas classificações eurocêntricas de branqueamento como “cultura popular” e/ou “folclore nacional” no intuito de se menosprezar e invisibilizar as contribuições negras para a construção política e cultural. Essa visão eurocêntrica e as estratégias de internalização de hierarquias conduzidas sob o colonialismo europeu ainda apresentam resquícios, já que é comumente utilizada como base para desenvolvimento da produção acadêmica ocidental.
A ideologia do branqueamento é um importante conceito destacado por Gonzalez (2019b, p. 354), tendo em vista que reforça a ideia de mito da superioridade branca e contribui para a perpetuação do racismo. Sendo a hierarquização compartilhada pelos meios de comunicação em massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, contribui-se para manutenção de negros e indígenas sob condições de exploração e subalternidade. Quando se analisa esses aspectos e hierarquias em contexto interseccional, nota-se a realidade sexista e de inúmeras violações a que a mulher negra é submetida.
Racismo e sexismo: A realidade da mulher afrodescendente no Brasil
Uma das questões levantadas por Lélia foi a perpetuação de ideias racistas e sexistas advindas do período colonial. A autora expressa preocupação com a construção da imagem da mulher negra no período atual representada corriqueiramente como mulata e doméstica. Assim, questiona os resquícios da divisão social e étnica do trabalho durante a escravização das mulheres, onde eram tratadas como mulatas, domésticas e mães-pretas (Gonzalez, 2019a).
A autora ressalta ainda a dualidade de entendimento do lugar da mulher negra na sociedade. Por um lado, menciona o “endeusamento” das passistas durante o carnaval, onde as negras são vistas em âmbito nacional e internacional como representação da cultura afro no Brasil. Por outro lado, durante o cotidiano as mulheres são menosprezadas e alocadas em subempregos ou em situação de desemprego. Essa comparação reforça a ideia de democracia racial e evidencia uma violência simbólica que recai sobre a mulher, especialmente a mulher negra (Gonzalez, 2019a, p. 17).
Lélia denuncia de maneira interseccional o racismo e o sexismo dentro dos movimentos sociais. O comportamento machista dos ativistas, que muitas vezes agiam de forma autoritária, controlavam a fala das mulheres e dominavam as estruturas decisórias, também foi alvo de debate de Lélia. Esse tipo de conduta em público também se manifestava na vida íntima e privada. Em adição, mencionam-se os aspectos raciais, nos quais as mulheres brancas têm menos chances de opressão. Nesse sentido, as mulheres negras sofrem duplamente: tanto nos aspectos relacionados a gênero, quanto à raça (Ratts; Rios, 2010, p. 95).
A discriminação contra mulheres negras também é imposta quanto à divisão do trabalho, já que, além de trabalhar fora (na maior parte das vezes como empregada doméstica ou subempregos), elas também são responsáveis por cuidar da casa, dos filhos e do esposo. Sendo assim, são comuns a sobrecarga e a dupla jornada de trabalho. Poucas chegam a um status econômico condizente com seu desempenho educacional. Nota-se que a cultura patriarcal e as formas de dominação racial poderiam ser exercidas não só por homens, mas também por mulheres brancas causando dupla exclusão por ser mulher e por ser negra. De acordo com Gonzalez (2019a), o lugar onde o sujeito está situado é responsável por determinar a forma de interpretação do duplo fenômeno que é o racismo e o sexismo. Esses fenômenos podem ser sintetizados como neurose cultural brasileira, onde a articulação entre eles produz nas mulheres negras um efeito violento.
Um recorte de gênero retrata inclusive o privilégio racial dado às mulheres brancas no sistema capitalista, que se beneficiam da exploração da mão de obra negra. Nesse sentido, Gonzalez (2018, p. 18) defende a importância de um feminismo que trate não só da perspectiva de gênero, mas de forma interseccional entre gênero e raça. Nesse sentido, as mulheres brancas são mais suscetíveis a serem contratadas pelas empresas, principalmente quando se propõe como pré-requisito a ‘boa aparência’, enquanto as mulheres negras com baixa escolaridade sofrem com o desemprego ou subemprego.
Lélia se consolida então uma pensadora da práxis política, buscando uma perspectiva que apresenta um mundo de “possibilidades de rompimento com as estruturas de desigualdade e opressão de ordem econômica, social e cultural” (Ratts; Rios, 2010, p. 99-100). A autora se propõe, então, a analisar a sociedade e construir um pensamento crítico acerca da subalternidade da mulher negra, bem como as causas socioculturais e econômicas que explicassem o contexto de desigualdades de raça, sexo e classe.
Democracia racial vs desenvolvimento desigual e combinado
Entre 1940 e 1950, uma linha de pensamento equivocada influenciada pelos escritos de Freyre concluíram que, no Brasil, o preconceito de classe seria maior que o de raça, já que a cor não estaria relacionada com a discriminação. Ademais, as formas de discriminação eram mais verbais do que comportamentais e a interação social não estaria diretamente ligada à raça, mas à outras características tais como o poder aquisitivo, o posto no mercado de trabalho e o nível de instrução escolar (Gonzalez; Hasenbalg, 2022, p. 106).
Durante o período de 1950 a 1960, vê-se o surgimento de uma terceira via de pensamento, que se propõe a analisar a relação de classe com a questão racial. Os estudos foram inicialmente desenvolvidos em São Paulo e contam com os trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Hasenbalg assume que as conclusões desses autores são bem parecidas e podem ser sintetizadas em:
O sistema de relações raciais é enfocado a partir da análise do processo de desagregação do sistema escravista de castas e da constituição de classes. A situação social do negro depois da abolição é vista á luz da herança do antigo regime. Preconceito e discriminação raciais, o despreparo cultural do ex-escravo para assumir a condição de cidadania e de trabalhador livre e a sua negação do trabalho como forma de afirmação da posição de homem livre resultaram na marginalização e desclassificação social do negro, que se estendeu por mais de uma geração (Gonzalez; Hasenbalg, 2022, p. 107-108).
Em outras palavras, as relações raciais são uma herança das classes constituídas durante o período escravista e a situação social e econômica do negro se dá a partir do despreparo cultural e educacional. Nesse sentido, entendia-se que, mesmo depois da abolição, prevalecia-se o sistema semisservil de relações de trabalho. Os estudos de Florestan Fernandes sobre a relação entre brancos e negros no período pós-abolicionaista são referências na contemporaneidade, principalmente com relação a inserção do negro no mercado de trabalho. Ainda para Gonzalez e Hasenbalg (2022), as ideias de Florestan Fernandes aponta que era evidente a discriminação racial inclusive com a preferência que os empregadores tinham sobre as contratações de imigrantes em detrimento de negros.
Em síntese, Hasenbalg argumenta que 1) o preconceito e a discriminação racial não são estagnados, mas maleáveis e se transformaram após a abolição adquirindo novas funções e significados de acordo com o desenvolvimento da sociedade; 2) as práticas racistas dos grupos dominantes sobrevivem e estão intimamente relacionadas com os privilégios e benefícios materiais que os brancos detém com a desqualificação competitiva do povo negro; e 3) a divisão e a hierarquia social são determinadas a partir da raça enquanto atributo social e construído historicamente. Nesse sentido, não se enxerga claramente a relação entre o desenvolvimento capitalista e as incompatibilidades entre racismo e industrialização (Gonzalez; Hasenbalg, 2022, p. 111-112).
Nos anos 1970, Lélia debate a existência de um sistema de desenvolvimento econômico capitalista com caráter de desenvolvimento desigual e combinado. Para a autora, as características das etapas de desenvolvimento capitalista podem ser resumidas em 1) uma formação produtiva que prevalece desde antes da formação do próprio capitalismo; 2) uma dependência econômica neocolonial baseada na exportação de matéria-prima para as grandes metrópoles (características do imperialismo industrial); e, 3) a existência de uma grande massa marginalizada representada pela população negra após a abolição e a industrialização que saiu do centro da produção econômica para a periferia (Gonzalez, 2018, p. 17).
Considerando a hegemonia do capital monopolista como fator do desenvolvimento desigual e combinado, Gonzalez (2020) define três processos de acumulação distintos qualitativamente coexistentes na formação econômica brasileira: capital comercial, capital industrial competitivo e capital industrial monopolista. Outra categoria descrita pela autora foi a existência de um desenvolvimento capitalista desigual e dependente. Neste, os processos de acumulação são combinados e gera uma superpopulação relativa à forma de produção hegemônica que atua como um exército industrial de reserva, ou massa marginal.
Gonzalez (2022, p. 19) aponta que a entrada agressiva de capital estrangeiro ampliou o parque industrial e causou a desnacionalização e o desaparecimento de pequenas empresas, impactando no serviço de inúmeras pessoas, em sua maioria negras. No campo, as pequenas propriedades foram abatidas pelos grandes latifúndios das grandes corporações multinacionais sob proteção do governo militar, nesse sentido, provocou-se o êxodo rural e o “inchamento” da zona urbana.
Um aspecto relacionado às desigualdades raciais e a mobilidade social é apontado por Lélia quanto a desigual distribuição geográfica de brancos e negros. Nos anos 1980, os negros viviam nas regiões predominantemente agrárias e com baixo desenvolvimento, onde as oportunidades educacionais e de ascensão socioeconômica. Essa realidade também se dá devido à importação de mão de obra europeia no contexto pós abolicionista, forçando a população negra a ficar à margem das políticas desenvolvimentistas.
Gonzalez (2018, p. 193) critica o discurso do dominador que naturalizava a condição de miséria do negro. No Brasil, assim como Lélia, Carlos Hasenbalg também critica os estudos difundidos nacional e internacionalmente por Gilberto Freyre na década de 1930 sobre os aspectos positivos da miscigenação. Para Hasenbalg (2022, p. 105), quando Freyre menciona de forma positiva a mistura racial proposta a partir da flexibilidade cultural do colonizador acaba acarretando na ideia de democracia racial, gerando inúmeras consequências. Dentre essas consequências, menciona-se a implícita ideia da ausência de preconceito e discriminação racial no país e a igualdade de oportunidades educacionais, econômicas e sociais para negros e brancos.
O lugar do negro no Brasil
A frase usada de forma irônica por Millôr Fernandes: “[…] no Brasil não existe racismo, porque aqui o negro conhece o seu lugar”, trazida nas interpretações de Lélia (2019b, p. 354), retrata a especificidade do racismo brasileiro quando se fala sobre as desigualdades raciais existentes no país. A ideia de inexistência do racismo é discutida amplamente acerca da naturalização e hierarquização dos indivíduos a partir de marcadores sociais determinados por raça, classe, gênero e localidade.
Lélia se preocupava e acreditava na possibilidade de se utilizar as diferenças e particularidades para construir um discurso mais humano. Foi uma ‘mulher fora de lugar’, rompeu com o que era descrito pela sociedade como ‘lugar de negro’ e contribuiu para que inúmeras mulheres afrodescendentes fizessem o mesmo. Lélia também criticava o conceito de “lugar de negro”, já que eram determinados como “espaço social e áreas de trabalho e de moradia inferiorizadas destinadas à população negra desde os tempos da escravidão” (Ratts; Rios, 2010, p. 145).
Esse lugar pode ser compreendido como espaço natural, social e/ou político. A ideia de “lugar apropriado” reforça a existência de práticas discriminatórias que são impostas à população negra e tendem a naturalizar a divisão racial do trabalho. Aos negros são oferecidos subempregos, condições de vida e moradia precárias, baixo grau de instrução, baixa remuneração, bem como são maior parcela da população desempregada.
Lélia traz de forma irônica um trecho onde apresenta a ideia sustentada pela sociedade brasileira:
Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença, porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto (Gonzalez, 2019a, p. 16).
Como efeito da visão da inexistência do racismo, vê-se a naturalização da miséria da população negra. Dessa maneira, Lélia critica as visões perpetuadas no cenário nacional acerca das seguintes premissas. É natural que o negro seja perseguido pela polícia, pois, não trabalha, se não trabalha é malandro ou ladrão, logo, deve ser preso, é o típico morador das favelas. Quanto às mulheres, são naturalmente cozinheiras, faxineiras, serventes ou prostitutas (Gonzalez, 2019a, p. 16).
Outra perspectiva passível de análise é a ideia de meritocracia. Nessa, os negros a partir do seu esforço e dedicação conseguiriam chegar aos mesmos lugares que os brancos. Se levarmos em consideração a disparidade de oportunidades de ascensão econômica, social e de escolaridade, percebemos o quão falha é essa premissa. Essa dualidade é percebida durante as discussões sobre a política de cotas que, em grande parte, é criticada pelos setores mais conservadores da sociedade.
Quando analisamos o acesso às oportunidades de ascensão econômica e educacional, percebemos o grau de desigualdade. Gonzalez (2020, p. 39) afirma que a maioria das crianças negras não possuem acesso à escola e, quando têm, a escola classifica a criança como indisciplinada, dispersiva, desajustada ou pouco inteligente. Sendo assim, é um aparelho ideológico do Estado que serve à manutenção das estruturas de dominação e discriminação cultural.
Quanto às forças de trabalho, observa-se que os setores que exigem menos qualificação são ocupados por negros, enquanto os postos que exigem maior qualificação são majoritariamente representados por pessoas brancas. É possível inferir também a disparidade na distribuição de renda e a população negra segue em desvantagem (Gonzalez, 2018, p. 100). As causas dessa desigualdade são resquícios de uma ideologia pautada na ideia de democracia racial, de uma sociedade harmônica e da existência da igualdade de oportunidades.
As práticas racistas dos grupos dominantes também podem ser vistas como obstrução da mobilidade social. Nesse âmbito, os estereótipos discriminatórios são evidenciados e perpetuados tanto nas produções acadêmicas, quanto nos meios de comunicação. A ideia da existência de um lugar apropriado para pessoas de cor é estipulada com uma base em uma classificação colonial que precisa ser questionada (Gonzalez; Hasenbalg, 2022, p. 113).
A hierarquização e a inferiorização do povo negro se dá a partir da construção, internalização e reprodução dos valores brancos ocidentais. Essa é uma questão levantada pela ideologia do branqueamento e nos faz questionar, sob o que é descrito nas obras Lélia, quais as representações da “alma da nossa gente” temos enquanto heróis oficiais? Por que se perpetuam as falas racistas, tais como “coisa de preto” no sentido pejorativo? Por que se infere que o negro deve saber qual é o seu lugar e que lugar é esse? Por que é tão difícil para o povo brasileiro assumir a existência e perpetuação do racismo? Por que há a naturalização da pobreza, violência e o cárcere do povo negro? Essas são algumas questões levantadas que carecem de discussão.
Se, por um lado, é delegada à população afrodescendente o lugar de subalternidade, por outro, destacam-se os atos de resistência. Lélia (2019b, p. 355) evidencia que a rigidez do sistema provocou a união e a luta contra as opressões racistas. No campo acadêmico, a produção científica da população negra têm avançado com autonomia, inovação, diversificação e credibilidade nacional e internacional. Os empecilhos disseminados e disfarçados pelo racismo têm sido rompidos a partir da organização e da resistência.
Levando em consideração o legado de Lélia de Almeida Gonzalez para a interpretação da população negra no Brasil e a intersecção entre a sua vida pessoal, política, acadêmica, profissional e de militância, observa-se o quão importante são suas impressões para a compreensão dos aspectos políticos e culturais do país. Reitera-se aqui a importância de Lélia enquanto mulher, feminista, negra, mestre, doutora e professora como expoente na interpretação da realidade amefricana sob as categorias políticas, raciais e de gênero.
Tomando as considerações de Lélia Gonzalez como base para este estudo e entendendo a sua importância para essa construção, optou-se por muitas vezes identificar a autora também pelo primeiro nome. Essa escolha é feita por entender que a vida e as obras de Lélia são inseparáveis, sendo necessária uma tradução do seu pensamento de forma mais pessoal e direta. Em síntese, é possível interpretar sua trajetória enquanto amefricana e que utiliza o pretuguês como língua para interpretar o Brasil enquanto parte da Améfrica Ladina.
Considerações Finais
No Brasil, a população negra se encontra em um ciclo cumulativo de desvantagens, com reduzidas oportunidades de ascensão social e econômica, restrito acesso ao sistema educacional, mão de obra mal remunerada e participação desigual na distribuição de renda. Para as mulheres negras, a realidade de exclusão é agravada pois é vista como objeto de produção ou reprodução sexual, que foi relegada à procriação e objeto de satisfação do colono. Nesse sentido, expressa-se também a sua participação no processo de miscigenação, já que o Estado brasileiro pregou a relação harmoniosa e consensual quando havia estupros e tratamento degradante.
As formas de dominação e exploração impostas e perpetuadas pelo modelo de desenvolvimento brasileiro determinam o lugar do negro. De acordo com as interpretações de Lélia, esse lugar não é alterado em grande medida pela falta de interesse das elites que se fazem presentes nas classes políticas e não se detém a propor políticas públicas para tal. Os movimentos sociais são importantes elementos no que tange às cobranças e a determinadas conquistas simbólicas e materiais no país.
Quando se trata do termo “lugar de negro”, Lélia defende que cabe à frase uma dupla interpretação. Por um lado, evidencia as desigualdades e hierarquias sociais e, por outro, expressa as formas de luta e resistência. Estima-se que com a ascensão social e econômica da população negra, a implementação de políticas públicas de acesso e permanência de negros em espaços acadêmicos, a assunção de pessoas negras em cargos de poder, a diversidade de fato em espaços sociais e o reforço da luta antirracista, são estratégias que evidenciam o outro lado do lugar de negro.
Referências
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