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LINGUAGEM E COLONIALISMO

Berlim de 1884 foi afetada pela espada e pela bala. Mas a noite da espada e da bala foi seguida pela manhã do giz e \”o quadro-negro\”. A violência física do campo de batalha foi seguida pela violência psicológica da sala de aula. Mas onde o primeiro era visivelmente brutal, o segundo era visivelmente gentil (…). Em minha opinião, a linguagem era o veículo mais importante pelo qual esse poder fascinava e mantinha a alma prisioneira. A bala era o meio de subjugação física. A linguagem era o meio de subjugação espiritual (THIONG’O, 1994, p. 9, tradução nossa).

Berlin of 1884 was effected through the sword and the bullet. But the night of the sword and the bullet was followed by the morning of the chalk and ‘the blackboard’. The physical violence of the battlefield was followed by the psychological violence of the classroom. But where the former was visibly brutal, the latter was visibly gentle (…). In my view language was the most important vehicle through which that power fascinated and held the soul prisoner. The bullet was the means of the physical subjugation. Language was the means of the spiritual subjugation (THIONG’O, 1994, p. 9).

A citação acima denota a influência da repressão linguística para o sucesso do projeto de dominação colonial orquestrado pelo Ocidente. Não nos enganemos pensando que esse tipo de prática tenha sido inventado no século XIX e aplicada somente no continente africano, muito pelo contrário, ela faz parte da nossa história aqui no Brasil também. Desse modo, o Debates busca refletir sobre as seguintes perguntas: como é a nossa relação com a língua portuguesa? Temos uma língua para chamar de nossa?

A chegada de europeus à Abya Yala (o continente americano) demarca o “encontro” com o “outro”, em que uma narrativa evolucionista é criada. Assim, discursivamente, os povos americanos foram enquadrados como “atrasados”, ao passo que os europeus se tornaram um modelo de “progresso” a ser seguido. Para além de se colocar em um pedestal, foi construída a narrativa do “fardo do homem branco”, que colocava o Ocidente no papel ativo de difundir esse “progresso”, “ajudando” os demais povos “inferiores”.

Nesse sentido, um dos focos dessa “tutela”, isto é, uma das formas de se “transmitir os conhecimentos da civilização, e a mais importante no estabelecimento da suposta superioridade do homem branco, se torna a língua do colonizador. Para além disso, a narrativa sobre os povos “atrasados” afirma que só lhes é possível conferir a categoria de “humano” quando esses “selvagens” “decidem” aprender a língua do colonizador. Dessa forma, o projeto colonial somente detém raízes tão profundas, mesmo com o fim do colonialismo formal, porque consegue atingir as mentes dos povos colonizados e ali prosperar seus valores, enquanto todas as línguas e culturas desses povos correm o risco de perecer.

Ademais, Ngugi wa Thiong’o (1994, pp. 13-16) aponta uma dupla finalidade para qualquer língua, reconhecendo que essa separação é para fins didáticos, uma vez que uma opera fazendo uso da outra. Por um lado, ela atua como um meio de comunicação, seja escrita e/ou oral, permitindo uma forma de interação entre seres humanos. Já, por outro, ela é uma portadora de cultura, carregando consigo a história dos hábitos e costumes de um ou mais povos, ou seja, sua identidade.

Apesar de já termos nos apropriado da língua portuguesa após cinco séculos, construindo uma “variável” brasileira (pensada nos termos de hibridismo), será que estamos presos na língua do outro, isto é, em sua história e cultura? Apesar de uma sátira, o escritor Lima Barreto (2007) criou com “Triste Fim de Policarpo Quaresma” um desconforto no Congresso Nacional Brasileiro da história quando Policarpo, o personagem principal, solicitou que o tupi-guarani se tornasse idioma oficial do Brasil. Acusado de insanidade, essa crítica fez com que o personagem fosse internado por seis meses em um hospício, porém, podemos utilizá-la aqui para refletir sobre nossa relação no encontro entre o português e as diversas línguas indígenas praticadas no Brasil de 1500 que foram e continuam sendo assassinadas simbolicamente pela morte física do genocídio indígena.

Thiong’o (1993) elucida tal problemática ao promover uma discussão sobre duas possibilidades de encontros linguísticos, que reiteram ou não posições de poder. Em primeiro lugar, quando duas pessoas que possuem línguas maternas diferentes se relacionam, suas expressões linguísticas podem se encontrar em um patamar de igualdade/independência. Já o segundo caso aponta uma opressão, quando uma língua, que pode representar um determinado povo, de uma (antiga) metrópole, dominando outro, de uma (antiga) colônia.

Assim, quando pessoas oriundas de escandinavos falam inglês para negócios e turismo (exemplo do autor), eles não estão apagando sua identidade, trata-se somente de um meio para a comunicação com o “mundo externo”. Os ingleses, por exemplo, quando falam o inglês carregam consigo seus valores culturais ao expressar-se nessa língua. Em contraposição, no contexto do colonialismo e, posteriormente, em Estados pós-coloniais como o Brasil, as práticas de dominação europeia contavam com o dispositivo da língua para “entrincheirar-se na nação oprimida” (THIONG’O, 1993, p. 49, tradução nossa).

Nessa perspectiva, é possível refletir sobre como o português (e o “bom” uso do português) vem sendo instrumentalizado para projetos de dominação no Brasil. Agora pensando na época do Império, isto é, a independência formal já tinha sido alcançada, oferecemos mais um exemplo da nossa história em que o “encontro” com essas línguas “outras” gera tentativas de proibição pelo poder colonial e/ou pelo Estado, para além do caso colonizadores e povos originários, em um momento de resistência, a Revolta dos Malês em 1835.

Uma das práticas comuns do tráfico negreiro era a separação de pessoas originárias de um mesmo grupo ou região ao chegar no Brasil a fim de impedir que uma língua comum criasse a oportunidade de comunicação e organização entre os escravizados e, consequentemente, levasse à contestação do ordenamento vigente. É importante notar que o haitianismo, isto é, o medo de que uma revolução como a que aconteceu no Haiti fosse de alguma forma replicada no cenário nacional ocupava as mentes dos senhores de escravos (estima-se que, na década de 1830, 40% dos habitantes da Bahia eram escravos). Além disso, especialmente durante o Período Regencial, houve diversas rebeliões e revoltas por todo o país, demarcando um contexto de maior instabilidade interna.

Dentre as diversas insurreições que ocorrem a respeito da luta contra a escravização e/ou durante o Império, a Revolta dos Malês se destaca na nossa reflexão por conta do uso do árabe em sua organização. É válido considerar que as manifestações não contaram com um grupo homogêneo de pessoas, seja por conta de seu local de origem no continente africano, seja por sua religião, mas o Islã enquanto uma religião do livro proporcionou a um grupo de pessoas alfabetizadas em árabe (seja no sentido “absoluto” ou no funcional) uma língua razoavelmente comunitária que auxiliou na troca de documentos e no planejamento da rebelião. A revolta não foi bem sucedida e seus participantes foram brutalmente reprimidos, contudo, ela exemplifica como a tática de separação de comunidades cumpria o objetivo de conter a coordenação entre as pessoas escravizadas (REIS, 2003).

Considerações Finais

Esses exemplos já dão a ideia de que não é possível afirmar a existência de uma coesão nacional a partir da língua, seja no âmbito geral, seja no caso brasileiro. Um dos grandes pressupostos do nacionalismo é uma união de pessoas a partir de interesses comuns, história compartilhada e uma língua mais ou menos uniforme. Se, por um lado, a língua deveria nos unificar, por outro, estamos presos/perdidos na língua do outro. De fato, no momento da independência em relação à Portugal e no Império, as relações do Brasil com seus vizinhos eram conturbadas, o que nos leva até a questionar nossa identificação como “latinos” hoje em dia. Mesmo assim, falar português não foi suficiente como instrumento de congregação nacional nem em 1800, nem atualmente.

Então o que significa comemorar nossa “língua nacional”? A data de hoje faz menção à criação do Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em 2006, que pegou fogo em dezembro de 2015. Pensar em museus no Brasil de 2021 nos leva à tristeza de seu sucateamento, isto é, a falta de verbas e preocupação do Estado com a preservação de nossa história. Mas o que significa celebrar o português como nosso idioma atualmente? O Brasil conta com uma taxa de analfabetismo “absoluto” de 6,6% (em setembro de 2020) segundo o IBGE, já a porcentagem de brasileiros analfabetos funcionais é em torno de 30% e de “proficiência”, ou seja, domínio da língua é de 12% da população (dados de 2019). Nossos índices de educação também são ruins se comparados aos demais países do mundo e, ainda, o governo atual busca aumentar o imposto sobre livros, porque os considera objetos de luxo. Portanto, cabe a nós refletir se celebrar uma língua que não era nossa, mas que apropriamos e a transformamos do nosso “jeitinho”, se tornou uma resistência.

Referências

BARRETO, L. Triste fim de Policarpo Quareesma. São Paulo: Saraiva, 2007.

REIS, J. Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Cia das Letras, 2003.

THIONG’O, N. Decolonizing the Mind. The Politics of Language in African Literature. 2ª ed. Harare: Zimbabwe Publishing House, 1994.

____. Moving the CentreThe Struggle for Cultural Freedoms. Nairobi: East African Educational Publishers, 1993.

Victoria Motta

Victoria Motta

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