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IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO

Ideias para adiar o fim do mundo

Ailton Krenak nasceu em 1973, no território Krenak, às margens do rio Doce. É ativista do movimento socioambiental e da defesa dos direitos indígenas. Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, possuindo um vasto trabalho como educador, ambientalista e jornalista. É comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Foi organizador da Aliança dos Povos da Floresta, além de contribuir para a criação da União das Nações Indígenas (UNI). Sua luta entre anos de 1970-80 contribuíram para a conquista do “Capítulo dos índios” na Constituição Federal de 1988.

Ideias Para Adiar o Fim do Mundo é resultado de uma palestra realizada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2019. O livro é resultado do aprofundamento do que foi debatido na palestra, e está dividido em três partes: “Ideias para adiar o fim do mundo”, “Do sonho e da Terra” e “A humanidade que pensamos ser”. 

No primeiro capítulo, “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton busca questionar a ideia de humanidade que temos aceitado, construído e adaptado nos últimos 3 mil anos. Sendo assim, Ideias para adiar o fim do mundo é uma tentativa de desmistificar a concepção sobre sustentabilidade que vem sendo vendida pelas grandes corporações para roubarem cada parte da natureza, que é legitimada com a produção de uma distinção entre ela e o homem e nos revela que adiar o fim do mundo seria a possibilidade de poder contar mais histórias. 

No segundo capítulo, intitulado  “Do sonho e da Terra”, o autor traz os problemas e tensões que a população indígena vem passando com o atual governo brasileiro, salientado que não é um problema novo, mas que se intensificou no último governo eleito. Além de trazer a desumanização da natureza, Ailton vai falar sobre como esse processo de desumanização legitima a destruição da Terra, uma vez que esta deixa de ser vista como parte integrante do sujeito. E nos traz o desafio de identificar um lugar de contato entre os mundos que estão cada vez mais distantes.

Por fim, no terceiro capítulo, “A humanidade que pensamos ser”, Ailton começa uma crítica a nossa acomodação baseado na ideia de uma única forma de ser e estar no mundo e nosso medo absurdo de romper com esse padrão. Krenak salienta que a queda é inevitável e então questiona por que não construímos paraquedas, trazendo o sonho como uma ferramenta para sua construção. Pensar e reimaginar o mundo fora dessa lógica que coloca o indivíduo separado da Terra e começar a pensar como parte integrante. 

Ailton  começa o primeiro capítulo do seu livro relatando sua primeira viagem para Lisboa em 2017, tendo aceitado após uma série de recusas o convite para participar do festival ibero-americana que acontecia no local em questão, onde passaria o documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra, de Marco Altberg. Tal documentário, salienta Ailton, é uma ótima oportunidade para iniciar os estudos a respeito do conceito de humanidade e como estamos construindo e adaptando essa ideia há mais de 3 mil anos.

O que legitimou a colonização européia e toda violência que com ela vinha foi uma lógica de humanidade construída, uma forma correta de ser e estar no mundo, criada pelo branco europeu, que era visto possuidor de uma “humanidade esclarecida” que ao chegar nas Américas se encontrou com uma não-humanidade, ou melhor, uma “humanidade obscurecida”. Todavia, diversos pensadores e críticos fazem a mesma pergunta “Somos mesmo humanidade?”. 

As instituições e agências criadas no século XX, como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Banco Mundial, a ONU (Organização das Nações Unidas), a OEA (Organização dos Estados Americanos) por exemplo, se perpetuam até hoje são vistas como parte estruturante da sociedade e da humanidade, sendo legitimada sua perpetuação, assim como decisões, uma vez que acreditam que elas estejam sempre pensando no bem-estar da humanidade.

Ideias para adiar o fim do mundo é uma provocação, na qual Ailton buscou desmistificar o mito da sustentabilidade que sempre é vendido pelas  grandes corporações como uma maneira de destruir o meio ambiente. Ao transportar os indivíduos para o terreno da humanidade, a Terra deixa de ser parte integrante, gerando uma ideia de que os indivíduos são uma coisa e a Terra outra, o que legitima sua destruição. 

Na região do rio Doce existe uma rocha chamada Takukrak. A população Krenak todas as manhãs consegue saber como será o tempo apenas olhando para ela:

Quando ela está com uma cara do tipo ‘não estou para conversar hoje’, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita com as nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: ‘Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser’

(KRENAK, 2019, p. 4).

Não é apenas a população Krenak que possui esse costume, diversos povos na Colômbia, Equador, Quênia, entre outros, entendem o meio/natureza como parte integrante com nome e personalidade.

Enquanto a humanidade se afasta cada vez mais da natureza, substituindo-a por “ambientes artificiais” produzidos pelas grandes corporações, enquanto essas mesmas corporações vão destruindo a Terra e deixando “amostras grátis” da natureza. Aqueles que não são comprados pela ideia das grandes corporações são esquecidos, jogados a “bordas do planeta”, são os caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, estes são vistos como “sub-humanidade”.

A ideia do ser humano como parte separada da natureza limita os indivíduos em todos os aspectos, negando a pluralidade das formas de vida e existência. Sendo assim, nessa ideia de humanidade homogênea os sujeitos são vistos e “transformados em consumidores e não em cidadãos” (KRENAK, 2019, p. 7). Então para que serve o título de cidadão? E qual a utilidade da cidadania? Como diversos indivíduos, em diversas culturas, com hábitos e costumes tão distintos podem ser capazes de habitar uma única cosmovisão? Adiar o fim do mundo seria “sempre poder contar mais uma história”. A partir da experiência individual, dos pequenos e grandes acontecimentos que todo sujeito passa estando no mundo, ouvir, contar e experienciar essas histórias é o meio de adiar o fim do mundo.

Quais as estratégias usadas pelos povos originários para resistirem até os dias atuais? Quais as ferramentas que permitiram que esse povo resistissem a toda violência que sofrida há mais de 500 anos? Como resistiram a violência sofrida com o discurso civilizatório? Foi a memória profunda da terra, que alimentou e alimenta esses povos, expandindo sua subjetividade, visões, poéticas e maneira de existir. A humanidade é diversa, assim como as constelações, cada sujeito é único com características próprias e vivermos juntos, mesmo com tantas diferenças, é a prova que conseguimos viver com o diferente, afinal a diferença é o que nos atrai. O conceito de humanidade é uma maneira de homogeneizar os indivíduos e extrair nossas características individuais, devemos então romper com esse termo e celebrar a diversidade.

Do sonho e da Terra

Não são atuais as tensões dos povos originários com os governos brasileiros. Todavia, as mudanças políticas que estavam acontecendo colocavam em risco direitos constitucionais relacionados à posse do território. A ausência de conhecimento a respeito das terminologias indígenas para se referir aos lugares sagrados não é recente, esse não conhecimento reducionista classifica esses lugares de sociabilidade como “terras indígenas”. Desde a colonização muitos duvidavam e desejavam a destruição e ocupação do território indígena e sua forma de organização, uma vez que o sistema busca uma integração entre as populações e a sociedade. Sendo assim, existe um impasse a respeito do restante da Terra que ainda existe, entre os que a querem para produzirem alimento e moradia e os que desejam extrair todos os recursos que encontrarem. 

Watn, o nome do rio Doce segundo os Krenak, é uma pessoa, uma parte integrante da comunidade, que forma o coletivo que habita aquele local, onde o governo transportou os povos originários para que estes vivam e reproduzam sua forma de ser e estar no mundo, bem como sua forma de organização, uma vez que o Brasil nunca tentou integrar esses povos. Essa falta de integração se dá porque os indivíduos dentro do sistema capitalista têm que “acrescentar” nesse projeto desenvolvimentista que gera a extração de toda a natureza e como estes povos se recusam a fazer isso são postos à margem.

Se fôssemos capazes, argumenta Ailton, de buscar visões de mundo que fujam dessa perspectiva homogênea, que permitam compreender e buscar uma cooperação entre os povos para nos salvar, poderíamos encontrar uma maneira de solucionar as consequências negativas das escolhas que fizemos por meio de rede de solidariedade entre os povos e indivíduos. É necessário um despertar, visto que hoje não são apenas os povos originários que estão ameaçados de extinção, mas todos os indivíduos que estão na Terra. 

O Antropoceno, uma era baseada no impacto e destruição do homem no meio, deveria ser visto como uma aviso de que estamos extraindo toda fonte de vida. Estamos cada dia mais destruindo formas de vidas que não cooperam com a lógica do mercado, e consequentemente destruindo formas de vida que poderiam contribuir para adiar o fim do mundo. 

Krenak é a junção de dois conceitos: kre que significa cabeça e nak significa Terra, logo Krenak seria “cabeça da terra”, sendo assim, a comunidade Krenak não pode e não consegue se compreender sem sua conexão com a Natureza, ela é parte da Terra, sendo esta um lugar de compartilhamento. Ao transformar a Natureza em um recurso, retirando dela toda humanidade e entendendo que a personalidade e todos atributos intrínsecos a humanidade está com os humanos, estamos legitimando a extração e destruição feita pelas corporações.

O desafio lançado reside em como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos, que, embora tenham uma mesma origem, estão cada dia mais distantes. 

Reconhecer a “instituição sonho” como um exercício para buscar nos sonhos os meios para as nossas escolhas, sonhar aqui deixa de ser o exercício diário de dormir e sonhar.  Aqui a “instituição sonho” possui um papel fundamental para compreensão do mundo, é uma disciplina que possui no sonhos as ferramentas para desenvolvimento e aprendizado, de autoconhecimento e de relacionamento consigo, com o outro e com o meio.

A humanidade que pensamos ser

Ailton começa a terceira e última parte do seu livro dizendo que estamos presos e acomodados a um único padrão do que é ser humano e um único modelo de existência, isto é, uma única forma de ser e estar no mundo. Ele supõe que se talvez rompêssemos com esse pensamento iremos nos desestabilizar e cair em um abismo. Todavia, questiona o autor, quem disse que a gente não pode cair?

E traz à tona que existe muita coisa para além do que imaginamos e pensamos sobre tudo. Já existiu uma época em que a Terra era totalmente distinta da que hoje temos. O Antropoceno gerou um “apego a uma ideia fixa da passagem da Terra e da humanidade”, não conseguimos compreender de forma genuína que a Terra existe antes da existência humana, logo, ela não é dependente da espécie humana. 

No imaginário coletivo que foi construído muito antes de nós, há somatórios de projeções, visões, períodos e desejos que nos foram passados sem que pudéssemos questionar, até chegar à ideia de humanidade e sentimento de pertencimento que temos e nos identificamos, fazendo com que nos sentíssemos parte integrante da Terra, sendo indissociável. Nossos ancestrais, argumenta Ailton, buscaram todas as maneiras de trazer a sensação de paz, e o fim do mundo, quem sabe, seria justamente uma quebra momentânea desse sentimento de prazer extasiante. 

A Guerra Fria foi uma exemplificação da iminência do fim do mundo, uma vez que houve uma divisão “Nós/Eles”, com um tentando descobrir o que o outro estava fazendo. O desconforto da ciência moderna não ficou restrito a um único ponto, mas sob todo o globo.

Por que tanto medo assim de uma queda, se a gente não fez nada nas outras eras senão cair? Já caímos muitas vezes, sustenta Ailton, mas ainda assim tememos a queda, isso porque se cairmos abriremos novas possibilidades que colocariam em xeque as formas a que já estamos acomodados e confortáveis. Sendo assim, sabendo que vamos cair, porque a queda é inevitável, por que não criar paraquedas? Diversos paraquedas, de diferentes formas, cores e prazerosos.

Mas de onde se projeta os paraquedas? Do único lugar onde diferentes visões e sonhos podem coexistir: para além da Terra, o “lugar do sonho”. O sonho que transcende o “casulo humano”, que permite e valida visões de mundo distintas da vida. São esses lugares de conexão completa com o meio que compartilhamos e que possui uma potência única.

Quando se pensa em reimaginar o mundo ou imaginar outro mundo possível, o que estão se referindo é uma organização com o espaço, como se os seres humanos fossem a parte da natureza. Logo, seriam novas maneiras de fazer do mesmo uma separação entre nós humanos e a Terra, onde podemos comê-la, socá-la, fratura-la para outro espaço, uma vez que não faz parte de nós. Existe um ciclo vicioso de questionar o mundo que recebemos, questionamos o mundo que recebemos dos nossos antepassados, mas não questionamos se o mundo que estamos construindo hoje será o que as gerações futuras desejam e/ou necessitam.

 Devíamos, segundo Ailton, aceitar que somos parte da multiplicidade de formas da natureza e abandonar essa ideia do homem e a humanidade como medidas comparativas, para que possamos estar dispostos e abertos a experimentar novas formas de escutar, sentir, inspirar e expirar tudo o que ficou a parte de nós, porque era natureza e nós humanos. Os quase-humanos são aqueles que ao decidirem ser e existir de maneira distinta ao modelo civilizatório foram jogados à margem sofrendo com a pobreza, fome e violência. 

Se o ponto de análise for o Antropoceno como ponto de partida, temos no primeiro contato do mundo Ocidental com o Outro não-europeu gerou a eliminação do Outro apenas no encontro, o que hoje conhecemos como epidemia, foi usado de forma indireta para dizimar milhares de sujeitos, este é um exemplo claro da tragédia da humanidade, não sendo um evento novo os desastres que estamos vivendo, que alguns chamam de Antropoceno.

Por que ler Ailton Krenak?

A obra de Ailton nasce como um confronto ao pensamento capitalista de que devemos destruir a natureza, baseado na construção de uma distinção entre “Nós”, seres humanos, e ‘’Ela’’, a natureza, e que em seu lugar sejam construídos mais “shoppings e estacionamentos”. 

Estamos tão condicionados a pensar que nós “humanos” somos uma coisa e a natureza é outra que acabamos por despersonificar a Terra, retiramos dela qualquer tipo de humanidade e racionalidade, somos atraídos pelo discursos hegemônicos de que a Natureza, por ser inferior, pode e deve ser explorada até os último resquícios e nos esquecemos que não existe um “lá fora”.

Sendo assim, a obra de Ailton traz uma nova forma de ser e estar no mundo, uma maneira distinta de viver na Terra sendo co-responsável pelo desenvolvimento e entendendo-a como um ser com personalidade. A obra de Ailton, mais do que uma obra teórica ou filosófica, é uma tentativa de trazer uma nova maneira de ver a realidade e a Terra, que permite compreender os discursos que as grandes corporações tentam nos vender, bem como busca maneiras de solucionar os problema que estamos produzindo enquanto humanidade.

Referência:

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora Companhia das Letras, 2019.

Lucas Marcelo

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