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DEMON SLAYER: REPRESENTATIVIDADE E SIMBOLISMO NO MUNDO DOS MANGÁS E ANIMES

Para citar esse texto:

FREITAS, Lucas M; PAES, Luisa. ZAPHIRO, Emily. DEMON SLAYER: REPRESENTATIVIDADE E SIMBOLISMO NO MUNDO DOS MANGÁS E ANIMES. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 21 set 2022. Disponível em: https://decoloniais.com/demon-slayer-representatividade-e-simbolismo-no-mundo-dos-mangas-e-animes/ Acesso em: *inserir data*

Nas últimas décadas, notou-se um aumento da popularidade de certos aspectos culturais japoneses entre os jovens no Ocidente. Dentre as principais aliadas para a exportação e popularização de aspectos culturais ligados ao Japão, destacam-se  tendências de vestimentas originárias do famoso bairro de Tóquio, Harajuku, o consumo de animações estilizadas conhecidas como animes, a globalização e o maior acesso a tecnologias. A demanda de certas Indústrias Culturais no Japão é muito explicada pela política de Diplomacia Cultural, um instrumento ao qual o país sempre foi adepto. O consumo de elementos culturais remete à projeção e cooptação da identidade japonesa, que procura se distanciar de um passado recente em que o país era conhecido pelo papel imperialista e colonizador que desempenhava nos países asiáticos. Exemplo disso é a famosa “estética kawaii’’, que ajudou a romper com a visão de um país conhecido na Ásia por seu poder militar e substituir (pelo menos para alguns) esse status por um que busca retratar uma sociedade jovem, carismática, inocente, fofa e com alto índice de desenvolvimento econômico.

O objetivo deste texto é analisar como a tentativa de exportação da cultura nem sempre é capaz de ignorar/invisibilizar os crimes cometidos pelo Estado Japonês durante o século XIX. Trazemos como exemplo a representação de símbolos dentro de uma mídia tradicional da sociedade japonesa que ganhou popularidade mundialmente. O anime e mangá Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba e o lançamento do filme “Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba the Movie: Mugen Train”, em outubro de 2020, lideraram bilheterias de diversos países orientais e ocidentais. Como consequência, um aspecto do design do protagonista da história obteve bastante repercussão fora do país de origem da obra. O brinco usado por Kamado Tanjirou faz referência ao símbolo do Sol Nascente, bandeira militar do governo japonês do século XIX, a qual remete à invasão/colonização sobre a Coreia e a China.

Para entendermos a tentativa do Estado Japonês de mudar a sua imagem perante o mundo, dividimos o trabalho em algumas sessões. Primeiramente, buscamos olhar para a História e identificar momentos em que o país já havia aplicado a diplomacia cultural em sua política externa, mesmo que de maneira e com objetivos diferentes. Em seguida, observamos um símbolo específico: a bandeira do sol nascente, que aparece no anime “Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba’’, seu significado e toda polêmica que envolveu o caso. Por fim, identificamos que a bandeira do sol nascente seria uma tradição inventada, cuja normalização ofende diversos grupos (japoneses e não japoneses) que tiveram suas vidas marcadas pelo período de domínio do império japonês. 

Um histórico da diplomacia cultural japonesa

A diplomacia cultural é o uso de meios culturais para exercer uma política de influência nacional no aspecto internacional. Seu objetivo principal é melhorar a imagem e prestígio nacional através de aspectos culturais como as artes, ensino de linguagem e tradições intelectuais. Uma expressão clara da diplomacia cultural é a criação de centros culturais como uma das formas de representação diplomática em países considerados estratégicos. No entanto, a política externa não pode ser reduzida somente a atos oficiais de diplomatas. Dado este conceito, o autor Kazuo Ogoura (2009) indaga: qual a imagem nacional que o Japão busca projetar para o mundo através da diplomacia? 

Desde o período do Império Japonês (1868-1947), o país já exercia esse tipo de preocupação em sua política externa. A imagem a ser transmitida tinha a função de convencer não só os japoneses, mas também os povos de outras nações que foram submetidas à dominação do Império a aceitarem sua suposta posição de dominância geopolítica na Ásia (Otsmagin, 2012). Nesse sentido, era importante erradicar a influência ocidental em suas colônias na Coreia, Taiwan e Manchúria, adotando uma postura de imposição/assimilação da linguagem e cultura nipônica em detrimento da local. Isso ocorria, de acordo com Akashi (1993), por meio do envio massivo de profissionais cultos, os chamados bunkajin, sendo estes professores, escritores, musicistas, comediantes e artistas em geral, a fim de disciplinar essas populações sobre o mito da superioridade do Japão e assegurar seu controle social.

Mais recentemente, a imagem nacional do país vem sendo moldada por seus governantes ao longo dos anos, tendo a diplomacia cultural como um importante instrumento em sua política internacional. No período que seguiu a Segunda Guerra Mundial (1937-1945), na qual o país se aliou a Alemanha Nazista e a ocupação estadunidense (1945-1952), o Japão desejava passar desapercebido, evitando desestabilizar pactos econômicos na Ásia devido ao medo de ressurgirem desavenças do período de guerras. Como coloca Ogoura (2008), o Japão foi bem-sucedido ao comunicar serenidade e tranquilidade, enfatizando tradições culturais como cerimônias de chá e até distribuindo panfletos com imagens retratando a neve no topo do Monte Fuji e anunciado o florescer das flores de cerejeira – até hoje associadas ao país-, transacionando a sua imagem de um país militar para um país pacífico.

Exemplo de um cartão postal do Monte Fuji vendido online por um colecionador na plataforma WorthPoint.

A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, particularmente após as Olimpíadas de Tóquio em 1964, os governantes japoneses mudaram a estratégia para projetar a imagem de um país tecnicamente e economicamente avançado. Esta mudança de imagem era necessária para recuperar o prestígio internacional após a II Guerra Mundial. Nos anos 1980, a diplomacia cultural já era assumidamente um dos três pilares da diplomacia do país em conjunto com o apoio a operações de paz ao redor do globo e assistência política e econômica ao desenvolvimento de outros países. Durante esse período, o Japão passou por outra transição, utilizando o conceito de cooperação cultural, que estimulava a cocriação artística dentro de outros países, ao passo que ambos trocavam conhecimentos culturais (Ogoura, 2008). Durante essa etapa da diplomacia cultural, o país já se via confortável para projetar políticas que, ao primeiro olhar, contrariavam as ideias coloniais na época do Império, em uma tentativa de apagá-las de sua história. 

Posteriormente, principalmente a partir dos anos 90, houve uma nova mudança ao apresentar o país como culturalmente atrativo (Otsmagin, 2012). Diferente do início do século, agora esta dominância era mais “discreta” e direcionada a ter apelo à juventude, devido a futura posição desta como força de trabalho emergente. A estratégia não se voltava  apenas para uma identidade nacional, mas abrangia também  uma postura internacional em que cultura e arte são uma extensão do próprio Estado. Ogoura (2008) acrescenta que o Estado Japonês viria a redefinir sua imagem em um mundo globalizado. Os aspectos “exóticos” da cultura não são mais enfatizados, a fim de polir a reputação construída de um país economicamente avançado, com instituições democráticas e de tradições culturais ancestrais. Agora, o país projeta a si mesmo como um pioneiro da cultura pós-moderna, alavancando a indústria nacional de produção de conteúdo.

Anime, mangá, moda, música pop, culinária e romances de jovens escritores começaram a ocupar um papel importante nas atividades culturais internacionais do Japão. A maioria dessas atividades, no entanto, é de natureza comercial, e a diplomacia cultural do Japão tornou-se intimamente associada à sua política comercial, como na proteção dos direitos de propriedade intelectual ou na participação em festivais internacionais de cinema e feiras de livros. Estes são simbolizados pela chamada indústria de conteúdo, que se refere às indústrias de música, anime, cinema, moda e serviços relacionados (Ogoura, 2008, p. 4). 

Anime Friends Tour: Rio de Janeiro 2019. Suco de Mangá, 22 set. 2019. Especial Cosplay. Disponível em: https://sucodemanga.com.br/anime-friends-tour-rio-de-janeiro-2019-especial-cosplay.

Outro aspecto dessa “nova” era da diplomacia cultural japonesa é o de se diferenciar das demais nações asiáticas que nas últimas décadas começaram a se destacar na economia mundial e podem agora exportar sua própria diplomacia cultural. O projeto diplomático japonês tenta, desse modo, enfatizar ainda mais os aspectos ultra modernos de sua sociedade, com destaque para as suas animações e a cultura otaku proveniente delas. Destaca-se também, a cultura kawaii, que molda comportamentos sócio-econômico-políticos, a partir da década de 70, mas atingiu patamares globais a partir dos anos 90 (Sato, 2009). Kawaii é traduzido para o português como ‘’fofo’’ e é um conceito que existe desde a era Heian que foi transformado após a Segunda Guerra Mundial e hoje em dia se mostra como uma estética resultante de entrecruzamentos da cultura japonesa e ocidental na área da arte e cultura (Okano, 2014). Destacam-se elementos como personalidade feminina, romântica e pacífica; no visual: juventude, olhos grandes e roupas características de acordo com o nicho. Muitas vezes essas personalidades estereotipadas saem dos mangás e são incorporadas na vida real como um estilo de vida, por exemplo: os cosplays, as lolitas. Na música, também através do Jpop.

A autora Kumiko Sato (2009) aponta a mudança da concepção de elementos entendidos como “fofos”, principalmente por meio do consumo de mangás e animações japonesas e seu reflexo no comportamento da sociedade jovem. A categorização do kawaii é definida por três conceitos: o ergonômico, o romântico e o gracioso (Shinji, 2007, apud Okano 2014). Essa estética, segundo Michiko Okano (2014), possui quatro fases, sendo a primeira fase do movimento datando seu surgimento entre os anos de 794-1185, durante a Era Heian. A segunda fase desse movimento estético ocorreu durante os anos de 1868-1926, e a sua terceira fase iniciou-se na década de 1970. É a partir dos anos de 1970 que é percebida a sua alteração e uma internacionalização de uma estética-cultura já existente na cultura japonesa. A quarta fase tem sua gênese nos anos de 1983 e vai até a contemporaneidade, com a inserção de otakus, com foco na sexualidade e no mundo apocalíptico.

Chamaremos a atenção para a indústria do anime, que vem a ser um produto de conteúdo para a exportação, tornando-se um veículo de difusão de elementos da cultura japonesa. O anime começou a se estabelecer como a sua própria indústria na década de 1960, passou a ser transmitido no Brasil na década de 1970, mas apenas começou a ser consumido em larga escala no país a partir dos anos 1990 (Gorgatti, 2011).

IMDB. Sailor Moon (1992). 

Ironicamente, durante o momento de diplomacia cultural mais recente do Japão, nota-se cada vez mais a utilização de símbolos ultranacionalistas em mangás e animes que remetem, conscientemente ou não, ao Império Japonês. Tais símbolos, representados muitas vezes sob aspectos positivos, geram uma discussão sobre o imperialismo nipônico e marcas de sua ocupação na Ásia, nos levando a indagar se a diplomacia cultural japonesa começa a tomar uma nova posição frente à política internacional.

Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba e o símbolo do Sol Nascente

  (…) a transmissão das tradições culturais se apóia no patrimônio do passado para conservar sua identidade, os grupos e as nações, que devem manter, cultivar, renovar seu patrimônio. Sob este olhar constatamos que a transmissão cultural está inteiramente ligada à educação (Gorgatti, p. 4, 2011).

Atualmente, a franquia “Demon Slayer” se consagrou como um clássico contemporâneo. Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba é uma série de mangá japonesa escrita e ilustrada pelo mangaká Koyoharu Gotōge, publicada pela primeira vez em uma edição da revista Weekly Shonen Jump em 2016, e um anime estreado em 2019, que até o momento desta publicação  ainda está lançando novos episódios (Komatsu, 2019).  O filme animado da franquia, “Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba the Movie: Mugen Train”, lançado em outubro de 2020 no Japão, quebrou diversos recordes desde seu lançamento. Em seu país de origem, ele ultrapassou o filme “A Viagem de Chihiro” como a maior bilheteria de todos os tempos (Moon, 2021) e, em abril de 2021, o último volume do mangá liderou as vendas nas livrarias sul-coreanas. Mas esse sucesso não se deu apenas nos países asiáticos; o filme também liderou as bilheterias dos cinemas estadunidenses. Somente nas duas primeiras semanas de estreia, arrecadou aproximadamente 6,4 milhões de dólares e se tornou o longa-metragem de anime mais bem sucedido na bilheteria global (Sabbaga, 2021).

O anime, assim como o mangá, tem uma identidade visual clara e seus personagens são facilmente reconhecíveis por suas vestimentas e características físicas. Por exemplo, o personagem principal é associado a uma cicatriz na testa, seu haori quadriculado e um brinco  com o desenho de um sol sob um círculo. Tal acessório, porém, ultrapassa o elemento estético da obra, possuindo um significado mais profundo dentro e fora dela.

 

CHARACTHER DESIGN REFERENCES. Art of Demon Slayer. 2017. 

O brinco é passado de geração para geração na família Kamado, representando a importância do legado na jornada do herói. Na história, os brincos também são utilizados pelo personagem Yoriichi Tsugikuni, o criador de umatécnica de respiração importante para o combate de demônios, e o seu porte aponta que seus usuários possuem a habilidade de uma prática de respiração do sol. O design do brinco supostamente é uma homenagem a cartas “hanafuda’’, popular jogo de cartas japonês (Mondor, 2021). Contudo, a semelhança com flores do brinco é ofuscada por um símbolo mais facilmente enxergado nessa imagem: o símbolo do Sol Nascente.

Embora não haja a aparente intenção de remeter o símbolo do Sol Nascente, ainda há um incômodo em sua representação para as pessoas que sofreram com a ocupação do Japão na época. A reação negativa do design do brinco com a similaridade do símbolo colonialista levou os produtores do anime a mudarem o design em algumas plataformas de streaming em países como China e Coréia do Sul. O brinco, em sua versão alternativa, possui linhas horizontais ao invés de verticais que lembram raios de sol (Mondor, 2021).

 

Brincos originais e a leve alteração no anime Demon Slayer: Kimetsu No Yaiba. ASHCRAFT, B. 2019.

Podemos compreender melhor tal problemática ao colocarmos em perspectiva a obra de Ronald Bleiker. Ao enaltecer a análise estética como um importante instrumento de compreensão, Bleiker (2009) entende que a arte é política em seu senso mais profundo. Isso ocorre porque, independente do meio de produção, a arte não se descola de seus significados de interpretação e o processo linguístico (seja ele por meio de palavras ou símbolos) é o modo o qual nos permite decodificar o subjetivo. Assim, a linguagem codificada na arte sempre terá um enquadramento ao ser assimilada. Em outras palavras, a interpretação daqueles que consomem a arte faz com que a mesma seja inerentemente política.

O que é o símbolo do Sol Nascente e o Imperialismo Japonês?

O símbolo do Sol Nascente caracterizou a bandeira militar do Japão durante o século XIX, período no qual o país invadiu e tomou posse do território da Coréia e de partes da China (em especial a Manchúria e o Taiwan). Durante a II Guerra Mundial, a política colonial ainda era posta em prática por japoneses, que ocupavam grande parte do continente asiático com suas tropas, utilizando o símbolo do Sol Nascente agora como bandeira da Marinha do Império Japonês. Vale a pena ressaltar que a atual bandeira nacional do Japão, Hinomaru, é um círculo vermelho sobre um fundo branco, enquanto a bandeira do Sol Nascente possui um círculo vermelho de onde partem 16 raios que remetem à expansão imperialista.

EMBAIXADA DO JAPÃO NO BRASIL, 2012. Símbolos Modernos com raízes históricas.

O modelo de dominação japonês em seus territórios colonizados na Ásia tinha como objetivo a exploração econômica, explica Ilmer (2020). Sob tal modelo, populações foram condicionadas ao trabalho forçado, vivendo sob políticas de opressões instituídas pelo colonizador. Sobressaem as atrocidades contra a população feminina, já que meninas e mulheres foram obrigadas a trabalhar em bordéis militares criados para soldados japoneses antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Ianfu, ou “mulheres de conforto”, foi o nome dado às vítimas do sistema de tráfico e escravidão sexual. Essas mulheres, geralmente de nacionalidade coreana, filipina ou chinesa, eram comumente tomadas à força para serem escravizadas e submetidas aos militares como um objeto para seu prazer sexual. Estima-se que as vítimas cheguem a 200 mil (McCarthy, 2020).Durante muitos anos, o governo japonês não reconheceu seus crimes e, até hoje, suas vítimas não receberam qualquer suporte ou justiça.

Cabe ressaltar que a Bandeira do Sol Nascente ainda é usada pelo governo japonês, sendo ela a insígnia da Força Marinha de Autodefesa japonesa e da Força Terrestre de Autodefesa do Japão, essa última minimamente modificada. Por mais que governantes japoneses neguem que a bandeira possua expressões políticas relacionadas aos meios de  discriminação, comunidades internacionais, especialmente a coreana e chinesa, opõem-se veementemente ao seu uso, gerando uma constante comparação à proibição do símbolo nazista da suástica (Taylor, 2015). A imagem abaixo retrata uma manifestação de um grupo de extrema direita no Japão com reivindicações racistas, utilizando não só a Bandeira do Sol nascente, mas também a Suástica Nazista.

KIM, S. 2019. Demonstração nacionalista em Tókio.

Assim, pode-se dizer que o símbolo do sol nascente seria uma “tradição inventada”. De acordo com Hobsbawn (2008), isso implica uma “continuidade em relação ao passado’’. Uma tradição inventada seria um símbolo criado de maneira intencional “(…) que utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal. Muitas vezes ela se torna o próprio símbolo de conflito, (…)’’. 

Elas parecem classificar-se em três categorias suprapostas: a) aquelas que estabelecem ou simbolizam coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aqueles que estabelecem ou legitimam instituições, status, ou relações de autoridade, e c) tenham sido certamente inventadas (como as que simbolizam submissão à autoridade na Índia britânica), pode-se partir do pressuposto que o tipo a) é o que prevaleceu, sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que as representam, expressam ou simbolizam, tais como a “nação” (Hobsbawm, 2008, p. 17).

O que o autor ressalta com o fator da “invenção” ganha destaque quando consideramos que a conexão com a história usada no simbolismo depende totalmente da narrativa de quem a escreveu e que essa não necessariamente será fiel à memória coletiva. Nesse caso, o símbolo do Sol Nascente está associado a uma longa lista de crimes de guerra e opressão. O Sol Nascente vira algo marcante de seu período, passando a não ser somente uma imagem, mas uma representação do ocorrido. 

Para as vítimas do colonialismo japonês, a bandeira lembra um passado de abuso brutal contra seus corpos ou de seus familiares, também manifestando no presente transtornos psicológicos remanescentes tanto no âmbito familiar quanto no âmbito social mais amplo. Desta forma, é importante ter cuidado com a representação desse símbolo, na medida em que seu uso descuidado nas mídias de hoje pode servir como uma espécie de gatilho.

Sol nascente e o Brasil

De acordo com Elton Alysson (2012), a primeira migração em massa japonesa durante a República Velha (1889-1930) foi financiada pelo próprio governo japonês, que precisava conciliar o crescimento econômico acelerado de uma minoria de empresários com o descontentamento da população pobre rural. Desse modo, iniciaram-se negociações diplomáticas para organizar esse transporte e suporte de imigrantes japoneses com destino ao Brasil, sob a promessa de prosperidade numa terra distante. Contudo, mudanças viriam a ocorrer em um futuro próximo.

Em contraste com a primeira fase de imigração (1908-1941), na qual os japoneses tiveram ajuda de seu governo para se estabelecer no Brasil, na próxima fase os imigrantes não puderam contar com o apoio de compatriotas por conta da devastação do país durante a Segunda Guerra Mundial. Adicionalmente, se os imigrantes japoneses (…) anteriormente aproveitaram uma recepção calorosa e um certo grau de empatia na sociedade brasileira, eles começaram a ser vistos como inimigos no início da guerra (Alisson, 2012, tradução própria).

AGÊNCIA SENADO. 110 anos da imigração japonesa no Brasil serão comemorados em sessão especial. 2018.

Durante o final da Segunda Guerra Mundial e a derrota do Japão, um importante conflito histórico ocorreu entre a comunidade Nikkey radicada no Brasil. Muitos japoneses se negaram a acreditar na derrota, alegando ser uma mentira inventada pelos estadunidenses. Essa desconfiança se dava por meio de uma narrativa de manipulação das notícias da mídia brasileira que chegavam ao Brasil. 

Nessa época, ocorria um forte ressentimento gerado pelas rígidas restrições impostas aos japoneses no país por serem considerados súditos do Eixo. O governo Brasileiro chegou até a considerar simples imigrantes rurais como ameaças, instituindo áreas de controle militar, isolamento e privações de direitos como o famoso campo de concentração de Tomé-açu. Segundo a reportagem publicada pela rede BBC, “(…) Boa parte das 49 famílias que viviam na região, à época, eram agricultores, e tinham pouco conhecimento sobre os combates que ocorriam em sua terra natal. Mesmo assim, foram considerados ‘prisioneiros de guerra’(…)’’(Fontana; Reed, 2020). A comunidade Nikkey acreditava ser inaceitável que uma comunidade de 200 mil japoneses radicados fosse deixada para trás, isolada do mundo, submetida às piores humilhações e impedida de praticar sua cultura e identidade, principalmente relacionada à proibição do uso da língua japonesa no país. 

Inamura 2022. IMIGRAÇÃO JAPONESA E O SURGIMENTO DA SHINDO RENMEI: APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DA INFORMAÇÃO NA ERA VARGAS.

No contexto da chegada de uma entidade que pudesse “unificar de novo a colônia em torno do Yamatodamashii, o espírito japonês’’ (Morais, 2011). Surge a organização nikkey nacionalista Shindo Renmei. Em um primeiro momento, ela ameaçou de morte os japoneses considerados “corações sujos”, ou “derrotistas”. Em São Paulo, as ameaças eram feitas através de bilhetes enfiados sob as portas das casas, enquanto que, no interior, pintavam-se os nomes num sotoba ou ihai e cravavam as ameaças nas portas de casas dos “derrotistas” (Morais, 2011). Entre 1946 a 1947, pelo menos 23 membros da comunidade japonesa no Brasil foram assassinados por acreditarem no fim da guerra e, ao menos, 147 foram feridos (Mori; Pappon, 2018).

Mesmo com a dissolução do Império Japonês, houve impactos geracionais diretos e indiretos que ecoam não só na comunidade nipo-brasileira, mas também em sobreviventes e descendentes dos crimes de guerra cometidos sob essa bandeira. Dentre as vítimas, destacam-se, por exemplo, as etnias indígenas Uchinanchus (Okinawanas) e Ainus, além de Chineses e Coreanos.

Considerações Finais

A obra de Koyoharu Gotōge, “Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba”, não é exceção à utilização descuidada do símbolo imperial japonês. Uma imagem que possui grande semelhança ao símbolo em um contexto positivo e na ausência de consciência crítica gera uma preocupação de como uma geração mais jovem pode vir a interpretar o passado colonialista japonês, ainda mais quando se pensa que o governo utiliza dessa indústria cultural de conteúdo – tais como animes– para moldar sua imagem no perspectiva no âmbito global. 

Indiferente se a referência foi feita de modo proposital ou não, a obra remete à Bandeira do Sol Nascente, a qual aparece em diversos momentos históricos por meio de movimentos ultranacionalistas a fim de reviver e alimentar o mito colonial de superioridade de um “espírito japonês”. Assim, podemos interpretar a passagem “A comunicação cuida da assimilação dos homens isolando-os” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 183), de modo que a banalização do símbolo do sol nascente em um meio de comunicação de massa aliena o público geral de seu significado, ao passo que, para as pessoas que sofrem com o trauma deixado pelo abuso no período da guerra, desperta dor e deslegitima o sentimento que tal símbolo possui.

Ao contrário do que muitos pensam e do que a estética kawaii procura demonstrar, o Estado Japonês, no período anterior à II Guerra Mundial, agiu de maneira imperialista e muitas vezes assumiu o papel de colonizador de muitos países asiáticos. É necessário buscar interpretar a popularização da cultura japonesa no Brasil também de maneira analítica, já que, assim como no Ocidente, esses elementos (cultura, mídia e história) se misturam. O Brasil é o país com a maior população de japoneses fora do Japão e esse fato igualmente se reflete na maneira como recebemos esses estímulos. Contudo, o senso crítico, em especial em defesa das pessoas submetidas aos horrores de explorações políticas, culturais e econômicas, nos mostra necessidade de estar atentos aos sinais que podem reafirmar a opressão humana.

Referências

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Lucas Marcelo

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Emily Zaphiro

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