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DECOLONIZE SEU OLHAR SOBRE OS POVOS CIGANOS

Para citar esse texto:

MARQUES, Luany. DECOLONIZE SEU OLHAR SOBRE OS POVOS CIGANOS. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 13 out 2021. Disponível em: https://decoloniais.com/decolonize-seu-olhar-sobre-os-povos-ciganos/ Acesso em: *inserir data*

Folclorização e fetichização de culturas ciganas

A construção de uma relação de poder parte da identificação de quem é o dominador e quem é aquele a ser dominado para marcar uma oposição dicotômica entre eles. Segundo Inayatullah e Blaney (2004) a construção da Modernidade nas relações internacionais teve como elemento central o uso da diferença cultural como categoria de subjugação do outro, de maneira que “a diferença se traduz em inferioridade e a igualdade só se dá sob o preço da assimilação”.

A partir do conceito de Orientalismo de Edward Said, o texto de hoje busca propor uma reflexão sobre a construção de narrativas sobre os povos ciganos a partir do olhar ocidental.  Para Said (2007, p. 18), “o orientalismo, portanto, não é uma fantasia avoada da Europa sobre o Oriente, mas um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas gerações, um considerável investimento material”. Dessa maneira, traça-se uma linha imaginária entre “Eu” e o “Outro” que, por serem intrinsecamente opostos, são incapazes de coexistir, cada qual conforme sua essência constituinte na lógica binária e dicotômica da dominação. Essa outridade é uma das bases de formação do pensamento ocidental, utilizada como legitimação ideológica do processo de dominação colonial.

Utilizando-se da narrativa dicotômica do “bem” x “mal” e do “selvagem”/“bárbaro” x “civilizado”, os colonizadores europeus cristalizaram valores morais para justificar a subjugação dos povos que fugiam aos moldes ocidentais de vida e sua reprodução. Nesse imaginário, tudo o que o “eu” colonizador representa é a regra e a normalidade e o que o “Outro” representa é desviante, exótico e alienígena. Nesse sentido, o contato entre as culturas Ocidentais e Não-Ocidentais passou a se dar a partir da exotização e da perseguição aos valores que não contribuíam com a formação do sistema moderno/colonial de domínio europeu. A construção desse sistema de poder e representação se perpetuou continuamente através das mais variadas esferas, como a historiografia, a produção artística, midiática, científica etc.

Nesse contexto, se relacionam de maneira indissociável o colonialismo, o desenvolvimento capitalista e a construção do sistema internacional moderno baseado na exportação do modelo Estado-nação, originário de movimentos europeus como a Revolução Francesa, isto é, uma expressão ocidental que se propõe universal. Ao demarcar e impor fronteiras nacionais aos territórios, o sedentarismo se impôs sobre o nomadismo, e as “sociedades que passaram a se organizar em comunidades sedentárias passaram a temer tudo aquilo que viesse de fora, do estrangeiro, tudo o que era diferente de uma aparente normalidade construída como fator determinante de sua segurança” (JUNIOR, 2013). Nos esforços de universalizar a hegemonia da propriedade privada, as formas de vida nômades e de uso comum dos espaços deveriam ser erradicadas.

Já historicamente discriminados por suas culturas, a perseguição contra os povos romani se intensificou à medida que o domínio ocidental colonialista se expandia, por meio de ferramentas de violência e dominação. A perseguição cultural foi um fator estimulante do nomadismo e vice-versa, de maneira que os roma desenvolveram, cada qual com suas especificidades, particulares formas de se relacionarem com o espaço que fugiam da modalidade ocidental sedentária de organização. Sem encontrarem pertencimento limitado a um determinado Estado-nação, a esses sujeitos –tidos como apátridas- foi negada a confirmação de sua própria existência, da qual deriva a restrição de uma série de direitos, como políticos, à saúde, proteção, educação e justiça. Isso, pois na cidadania liberal a garantia de direitos está diretamente e unicamente relacionada a um vínculo com um Estado-Nação, de forma que o não vínculo com uma unidade estatal significa não apenas a perda de direitos, mas da própria humanidade.

Enquanto uma ameaça ao modelo Estado-nação, toda forma de nomadismo passou a ser combatida na tentativa de erradicação desse modo de vida considerado “atrasado”, como demonstram as palavras do sociólogo francês Michel Maffesoli: “O nomadismo é totalmente antitético em relação à forma de Estado moderna. E esta se preocupa constantemente em suprimir o que considera a sobrevivência de um modo de vida arcaico. Fixar significa a possibilidade de dominar” (Maffesoli, 2001, p.24). Vemos, portanto, a intrínseca relação entre outridade, dominação e colonialidade/modernidade, estrutura que atravessa a história e a vivência dos povos ciganos.

Os povos ciganos no Brasil

Temos uma história dos ciganos construída por não-ciganos. (…) Podemos afirmar que, ao estudar a história dos ciganos, compreendemos muito mais a história daqueles que os rejeitaram e das imagens que se formaram a respeito destes, do que dos ciganos em si. (Miranda, 2010, p. 25)

A chegada dos roma ao Brasil se deu como consequência desse processo de perseguição cultural na Europa. O envio forçado de ciganos ao Brasil foi usado pela Coroa Portuguesa como uma maneira de “limpar” o país desses “indivíduos indesejáveis”. Uma vez no Brasil, a ordem imperial era a de proibir o uso das línguas ciganas, para impedir a perpetuação de sua cultura na colônia e garantir a dizimação de suas identidades. Isso, pois na cultura romani, assim como na maioria das culturas tradicionais e pré-coloniais, a língua é um elemento de enorme importância, por serem de reprodução oral e não escrita, e permitir a manutenção de suas tradições, assim como o reconhecimento entre si.

As políticas anti-ciganas tomaram forma, também, por meio da violência policial, com a formação das “Correrias de Ciganos” que invadiam acampamentos ciganos, expulsando, aterrorizando e, muitas vezes, assassinando-os. A violência contra os roma se justificava essencialmente pela representação destes como pessoas perigosas, imorais e trapaceiras.

Este imaginário anti-cigano se perpetuou através da produção historiográfica e midiática sobre as culturas romani, veículos dominados por não-ciganos contando de maneira distorcida a história daqueles impedidos de acessar as narrativas da História. A imagem propagada dos roma na mídia é constantemente estereotipada, guardando a essência Orientalista do imaginário ocidental. Os elementos de suas culturas são folclorizados e os indivíduos exotizados, hiperssexualizados e fetichizados. Como herança do pensamento cristão, as mulheres ciganas são constantemente retratadas pejorativamente como bruxas e feiticeiras por suas práticas culturais. Essa visão se mantém nos dias atuais e, enquanto não-ciganos se apropriam dos elementos culturais para se “fantasiar” no Carnaval, os povos ciganos seguem sendo marginalizados, perseguidos e excluídos. Essas representações são racistas e desconsideram a pluralidade cultural que permeia o universo cigano, retratando-os de maneira homogeneizada e cristalizando artificialmente as diversas etnias em conceitos e abordagens estereotipadas.

Apesar de constantemente impedidos e criminalizados por reproduzirem suas culturas, os romani mantêm suas tradições e vínculos afetivos mesmo experienciando outras formas de organização social, como afirma Roy Rogeres (2020) da etnia Calon, jornalista e ativista pelos direitos e reconhecimentos dos povos ciganos.

Manutenção do colonialismo, racismo e perseguições nos dias atuais

Eu mato um leão por dia pelo fato de ser mulher e ser cigana. Onde a gente passa vestida de cigana, se passa em frente a uma loja, as pessoas já olham achando que vamos roubar. Se tem uma criança, já ficam segurando na mão achando que a gente vai levar a criança embora, como se fôssemos marginais. Isso passa de séculos em séculos e não muda. 

– Lêda Coutinho em roda de conversa no Dia do Cigano.

Atualmente, estima-se que existam cerca de 1 milhão de romani vivendo no Brasil, majoritariamente das etnias Calon, Rom e Sinti. Em contrapartida, são escassas as políticas públicas para as questões específicas desses grupos. A Universidade Federal do Estado da Bahia (UNEB) foi pioneira em incluir grupos étnicos ciganos no sistema de ações afirmativas, um passo importante para garantir o acesso dos roma ao Ensino Superior, mas o caminho para a igualdade de oportunidades ainda é longo e demanda muito mais ações diretas do poder público.

Além da falta de políticas afirmativas, o descaso e o ódio anti-ciganos são propagados por figuras do Governo Federal. O ex-ministro da educação Abraham Weintraub, em mais uma fala racista, disse odiar o termo “povo indígena” e “povo cigano”, seguido da afirmação de que “Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré”. A ministra das Mulheres e Direitos Humanos Damares Alves, apesar de haver garantido no discurso de abertura do evento “Ciganos no Brasil: Diálogo e Construção” que “no governo Bolsonaro, os ciganos não ficarão para trás”, retirou-os o pertencimento ao grupo prioritário de vacinação contra a Covid-19, contemplado aos Povos e Comunidades Tradicionais.

Atitudes como essas, vindas de altas entidades do Governo, propagam o apagamento desses povos e suas culturas, reforçando a invisibilização da marginalização que eles sofrem, como a fome que se alastra de maneira perversa entre eles, o acesso precário à saúde e educação de qualidade e as profundas questões territoriais e de moradia advindas da negação de seus direitos e reconhecimentos.

Desde julho deste ano, em um terrível caso de perseguição étnica e racismo, a Polícia Militar do Estado da Bahia tem invadido acampamentos ciganos em Vitória da Conquista e os “caçado como animais pelas milícias”, segundo o Instituto de Ciganos do Brasil (ICB apud G1). Até o momento, oito ciganos da mesma família foram assassinados pela PM, entre eles um adolescente de 15 anos. O ICB emitiu uma nota demandando a intervenção do poder público no caso, com assinatura de mais de 60 lideranças ciganas. A família foi colocada no programa de proteção a testemunhas após chacina, executada por uma das polícias mais violentas do país e, conhecida por ser a que mais mata negros em todo o Brasil.

Luta e resistência dos povos ciganos

Os olhares discriminatórios, racistas e segregacionistas sobre os romani tardam em ser erradicados de nossas sociedades, para eles serem ouvidos ao contarem suas próprias histórias e estejam livres das amarras narrativas criadas por não-ciganos na tentativa de exterminar suas culturas.

Para decolonizar e desorientalizar seu olhar, indicamos estes perfis no Instagram que muito lutam e contribuem para essa emancipação e celebram as diversidades ciganas:

@ciganagens

@cigana_e_dissimulada

@royrogeres

@ateliecalo

Também, indicamos o longa metragem “Olho a Dentro – Povo Cigano”, realizado pelo Coletivo Gaiolas e Mulher de Bigode Filmes, que através de um olhar sensível e emocionante, retrata a força das mulheres ciganas, seu papel na construção da identidade social cigana e as questões de gênero que permeiam sua cultura. Encontrado em: https://vimeo.com/501800759.

 

Sobre os termos: cigano, romani, roma e rom

Parte do ativismo internacional reivindica o desuso completo do termo “cigano”, pela consolidação dos estereótipos que ele evoca. A própria etimologia deriva do grego Atsingani, intocáveis, “termo usado para se referir a um rom no período bizantino” (Souza, p. 6).

Como alternativa, o termo correto seria romani, já que esses povos falam a língua romani e derivações como característica étnica predominante e por ser um termo da língua nativa. O termo “rom” remete ao indivíduo romani, e “roma” a um grupo romani.

Contudo, essa reivindicação não é universal, uma vez que nem todos ciganos se consideram roma. Ainda, segundo Mio Vacite (Souza, p. 299), presidente da União Cigana do Brasil, “a reivindicação da categoria rom (ou roma no plural) exclui fundamentalmente os ciganos calons, porque estes não se reconhecem como roma – diferente de ciganos como os horahano, kalderash e lovari”. Dadas essas divergências e por considerar válidos ambos argumentos, com o conhecimento do qual dispomos no momento de redação deste texto, optamos por utilizar todos os termos acima.

Referências

ROGERES, Roy. A importância das ações afirmativas para nós ciganas, ciganos e ciganes: o exemplo da UNEB!. Diálogos sobre educação e justiça social, 2020. Disponível em: <https://www.educacaoejustica.com.br/post/a-import%C3%A2ncia-das-a%C3%A7%C3%B5es-afirmativas-para-n%C3%B3s-ciganos-e-ciganas-o-exemplo-da-uneb>

SOUZA, Miriam Alves de. Projeto identitário e construção dos “ciganos no Brasil”. p. 287, CIGANOS Olhares e perspectivas. Editora UFPB João Pessoa 2019. Disponível em <http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/download/341/506/2947-1?inline=1>

JUNIOR, Lourival Andrade. Os ciganos e os processos de exclusão. Dossiê: Inclusões e Exclusões, Rev. Bras. Hist. 33 (66), 2013. Disponível em <https://www.scielo.br/j/rbh/a/g6gbcSvyMGFt5FkKmd6RHMG/?lang=pt>

MAGALI, Lina. Roda de conversa e abertura de exposição marcam Dia do Cigano, 2019. Disponível em <http://www.bahia.ba.gov.br/2019/05/noticias/cultura/roda-de-conversa-e-abertura-de-exposicao-marcam-dia-do-cigano/>

MIRANDA, Francielle F. F. As representações dos ciganos no cinema documentário brasileiro [manuscrito]. 2011. XV, 139 f. : il., figs. Disponível em <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/76/o/FRANCIELLE_FELIPE_FARIA_DE_MIRANDA.pdf>

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (tradução de Rosaura Eichenberg)

Após mortes de PMs, Instituto Cigano pede intervenção do poder público ao denunciar represálias: ‘Caçados como animais’. G1, Bahia, 19 de julho de 2021. Disponível em <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/07/19/apos-mortes-de-pms-na-ba-instituto-cigano-do-brasil-pede-intervencao-do-poder-publico-por-represalias-cacados-como-animais.ghtml>

Luany Marques

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