Para citar esse texto:
CARVALHO, Beatriz; FREITAS, Lucas M; GOMES, Rayana; VALENTE, Ana B. BIOTERRORISMO COMO HERANÇA COLONIAL NO BRASIL: O GENOCÍDIO INDÍGENA AO LONGO DA HISTÓRIA. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 2 nov 2022. Disponível em: https://decoloniais.com/bioterrorismo-como-heranca-colonial-no-brasil-o-genocidio-indigena-ao-longo-da-historia/ Acesso em: *inserir data*
No documentário e livro “Armas, Germes e Aço”, produzido e escrito pelo geógrafo, historiador e ornitólogo, Jared Diamond (1997), o autor é questionado por um morador da Papua – Nova Guiné sobre o porquê algumas civilizações se desenvolveram no meio tecnológico e dominaram outros povos enquanto outras não. Com isso, observando os moradores da região que, segundo ele, viviam como caçadores-coletores assim como aqueles que viveram no período Paleolítico (5000.000 a 8.000 A.E.C.), o autor concluiu que a história de cada civilização seguiu cursos diferentes por causa das diferenças entre os ambientes das pessoas (Diamond, 1997).
Segundo Diamond (1997), todos os seres humanos possuem a mesma capacidade intelectual. No entanto, ao pensar na geografia como principal fator determinante de desenvolvimento tecnológico de uma sociedade, Diamond (1997) começa a estudar os fluxos migratórios no Oriente Médio. De acordo com ele, a vegetação e o clima árido e semiárido provocaram as migrações daqueles que viviam ali para locais em que pudessem ter um maior acesso às necessidades básicas, tais como a alimentação. A partir desses fluxos migratórios, a sociedade da Eurásia passou a se alojar em locais em que o cultivo era possível.
Com residências fixas, essas cidades passaram a atrair famílias, e seus moradores passaram a domesticar animais para auxiliar nas tarefas agrícolas, enquanto os cavalos se tornaram o principal meio de transporte. Como essas cidades não possuíam um plano de gestão de resíduos e todos passaram a ter muito contato com os animais, as doenças passaram a se proliferar e a sociedade passou a criar resistência por meio da seleção natural.
Diamond (1997) denomina essas doenças que são propagadas por “germes”. Durante o período das Grandes Navegações (séculos XV a XVI), Diamond (1997) argumenta que os germes foram um fator importante para a dominação das novas terras, pois, ao entrar em contato com os primeiros povos das novas regiões, os colonizadores levaram, inconscientemente, estes germes para estas civilizações. Dessa maneira, as pessoas dessas terras, que nunca tiveram o contato com aquele agente acabaram adoecendo e, eventualmente, morrendo.
Apesar do autor declarar que todos os seres possuem a mesma capacidade intelectual, o fato dele defender que a geografia é um fator determinante para a evolução torna o estilo de vida autossuficiente dos moradores da Papua-Nova Guiné seja invalidado. Ou seja, para Diamond (1997) a geografia é um fator importante para a evolução humana, e muitos povos não tiveram a mesma sorte que seus colonizadores para que pudessem evoluir, revelando assim um argumento racista e etnocêntrico que ainda hoje é tomado como verdade pela academia.
Diamond (1997) também afirma que os germes trazidos pelos colonizadores não foram transmitidos intencionalmente; no entanto, analisando a história, percebe-se que não foi bem assim. Além disso, ao utilizar o termo germes para as doenças transmissíveis, o autor transfere a responsabilidade da proliferação para os microrganismos e não para os colonizadores, apagando da história a perspectiva de que estes agentes foram utilizados como arma colonial contra os indígenas, a fim de realizar o genocídio indígena e, consequentemente, conquistar a total dominação territorial e a exploração dos minérios e da agropecuária, prática que perdura até os dias atuais.
Neste artigo, nosso objetivo é analisar a instrumentalização, direta ou indireta, de epidemias e pandemias pelos colonizadores e pelo Estado brasileiro com objetivo de provocar o genocídio – ou seja, o aniquilamento total ou parcial de grupos humanos por meio de submissões a condições insuportáveis a vida – indígena, para que os territórios ocupados por estes grupos sejam explorados ou colonizados.
As análises foram divididas em três períodos da história do Brasil: o período colonial (1500 a 1822), o regime militar (1964 a 1985) e a pandemia de Covid-19 (2020 a 2022). Períodos onde as ações de contaminação contra as populações indígenas foram intensificadas e amplamente denunciadas, mas pouco ou nada foi feito para detê-las, a não ser por parte dos próprios indígenas. A escolha destes três casos para análise expõem de forma sucinta alguns métodos de articulação do bioterror: a forma direta aplicada pelos colonizadores, a forma indireta onde o governo militar arquitetou, financiou e encobriu as invasões e violências, e a forma indireta que o governo Bolsonaro incentivou invasões e enfraqueceu todo o sistema de saúde e de proteção indígena durante a pandemia de Covid-19.
Por fim, buscamos entender como o bioterrorismo tem sido deliberadamente usado como um instrumento de dominação colonial nas Américas, conforme demonstrado pelo documentário de Diamond (1997), mesmo que o autor adote outra narrativa dos fatos. A análise de como isto se repetiu e continua se repetindo na história do Brasil ressalta a importância de não negligenciar as violências indiretas contra os povos indígenas, ainda que estas sejam percebidas com menor peso pelos não-indígenas.
Terrorismo: uma forma de garantia de interesses
No livro “Inside Terrorism”, escrito pelo analista político e especialista em estudos sobre terrorismo, Bruce Hoffman, é declarado que terrorismo é um fênomeno essencialmente político, no qual a violência é utilizada a fim de alcançar algum objetivo político de forma planejada. Conversando com Hoffman (2017), no livro, Dicionário de Política, organizado pelos historiadores e filósofos Norberto Bobbio e Nicola Matteucci, Luigi Bonanate separa o conceito de terrorismo e terror, sendo:
- Terrorismo – “Instrumento ao qual recorrem determinados grupos para derrubar um sistema acusado de manter-se por meio do terror” (Bonanate, 1986, p. 1 242);
- Terror – “Instrumento de emergência a que um governo recorre para manter-se no poder” (Bonanate, 1986, p. 1 242).
Isso significa que o terrorismo possui como característica a organização, ideologia, estratégia, o terror de sua vítima e a ampliação do seu poder para atingir seu centro e concluir seu objetivo, mantendo-se no poder.
A concepção de terror que Bonanate opõe ao terrorismo político, e que surge identificada com um governo que pretende ilegitimamente manter-se no poder, parece bastante vaga, uma vez que o “instrumento de emergência” pouco explicita acerca da situação e das estratégias utilizadas, parecendo apenas indicar um último recurso possível por parte de um governo que já não tem o apoio do povo. Mas o que ressalta dessa concepção de terror é que a sua única justificação é a de manter-se no poder, que já não é visto como legítimo (Seixas, 2008).
Após o atentado do dia 11 de Setembro, o Center for Disease Control and Prevention (CDC/Estados Unidos) definiu que bioterrorismo é a liberação deliberada de vírus, bactérias ou outros agentes, utilizados para causar doença ou morte em pessoas, animais ou plantas. Esse tipo de evento pode ser considerado um acidente grave ou intencional e pode provocar a perda de vidas, desestabilizar a economia, prejudicar os serviços de saúde e/ou atingir interesses políticos.
Morse inclui na definição do CDC, a palavra ‘terror’, sugerindo que o elemento surpresa e o fato de um ataque de bioterrorismo pode levar horas ou dias para ser descoberto, utilizando-se da dimensão psicológica como uma ferramenta importante para terroristas e prejuízos econômicos. Os ataques resultam em doença e morte, destroem o equilíbrio psicológico e emocional da população e expõem os indivíduos à submissão pelo medo (Cardoso, 2011).
Apesar de os estudos em torno do terror e do terrorismo terem ganhado notoriedade na academia após o atentado do dia 11 de Setembro nos EUA, o terrorismo esteve presente no período colonial na América Latina. Em Armas, Germes e Aço, Diamond (1997) afirma que os “germes” foram disseminados de forma não intencional e isso contribuiu para que estes dominassem os povos originários. No entanto, analisando as epidemias durante a colonização e república do Brasil, podemos perceber que os colonos ganharam ciência que as “doenças de branco” poderiam dizimar a população indígena e, portanto, passaram a utilizar esse meio para alcançar o seu objetivo político de eliminar os povos originários e manter-se no poder através do bioterror.
Com a disseminação das doenças através do bioterror – instrumento de emergência recorrido para o mantimento do poder através da disseminação de um agente -, o império português poderia explorar as terras brasileiras sem o impedimento da presença indígena.
Genocídio indígena e a conivência do Estado brasileiro
Casos de disseminação intencional de doenças de potencial epidêmico em comunidades indígenas no Brasil têm se repetido continuamente desde a colonização. Os casos são conhecidos mas seguem sendo retratados como acidentais e isolados, pois servem aos interesses de expansão do território explorado para o enriquecimento das mineradoras, madeireiras e da indústria agropecuária com a conivência do Estado brasileiro. Isso porque, mesmo nos casos não intencionais provocados pelo próprio governo, como foram muitos casos de infecção no período da ditadura e durante a pandemia, a negligência com que são tratados também é parte do plano de governo para o genocídio dos povos indígenas.
Nos anos de 2020 e 2021 durante a pandemia de covid-19, ocorreram inúmeros ataques, partidos do próprio governo brasileiro, às entidades governamentais e normativas que asseguram os direitos dos povos originários no Brasil. Simultaneamente, cresceram as invasões de empresas madeireiras, mineradoras e grileiros em territórios indígenas. Segundo os dados da Rede Simex (2022) de monitoramento de extração ilegal de madeira, a exploração madeireira em territórios indígenas no Pará, entre julho de 2020 e julho de 2021, cresceu de 158 para 1.720 hectares, o que corresponde a um crescimento de 1.000%. Nesse mesmo período, em junho de 2020, a Funai (Fundação Nacional do Índio), por meio da IN nº 9/2020, revogou parte da medida que impedia a invasão de territórios indígenas que ainda estão passando pelo processo de homologação. Enquanto isso, o chamado ‘PL da Grilagem’, o PL 2633, passava pela aprovação da Câmara dos Deputados.
O desmantelamento da saúde indígena durante a pandemia não demonstra meramente um descaso, mas uma política de governo que já estava sendo executada com o desaparelhamento de órgãos importantes como a Funai, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a Agência Nacional de Mineração desde 2019.
O processo de genocídio dos povos indígenas no território brasileiro teve início com a invasão e colonização perdura até os dias atuais. Dentro dos casos “acidentais” ou intencionais de disseminação de doenças impera o bioterrorismo contra os povos indígenas que provoca a perda de vidas e um grande apagamento cultural e histórico, uma vez que a morte de um indivíduo, além de ser uma vida humana, também significa uma grande perda para muitas comunidades já vulneráveis e pode desestabilizar todo seu sistema.
Colonização: o massacre dos Timbiras
Uma ferramenta amplamente utilizada no processo de genocídio indígena no Brasil foi a tática de infecção premeditada com doenças provenientes dos colonizadores europeus e seus descendentes, como a Febre amarela, a Varíola e o Sarampo. Não se sabe, porém, a quantidade exata de vezes que essa estratégia foi empregada no extermínio de comunidades ao redor do país por conta da falta de documentação e de apuração dos casos (NEIVA, 2020). No entanto, é de conhecimento geral que desde o início da colonização no século XVI, houve o surgimento de inúmeras doenças trazidas pela colonização europeia que, simultaneamente a outros tipos de violência como a escravização e guerras territoriais, causaram a morte de milhões de indígenas.
Um dos casos mais notórios do uso proposital de armas biológicas na tentativa de aniquilação de povos originários no país foi o massacre dos Timbiras, ocorrido, de acordo com Mércio Pereira Gomes (2022), no Sul do Maranhão em 1816. A disseminação intencional do vírus da varíola contra a comunidade indígena por parte de criadores de gado pode ser chamada de “arma colonial”, tendo como objetivo principal a dizimação total da população Timbira que habitava na região. O episódio foi responsável pela morte de milhares de indígenas de diferentes comunidades, uma vez que a epidemia da doença se espalhou para outras áreas ao redor da vila de Caxias, alcançando diferentes povos.
O plano era atrair os índios para a vila, então atacada por uma epidemia de bexiga (varíola). Uma vez ali, as bexigas dariam conta deles” (Ribeiro, 1996), descreve o antropólogo Darcy Ribeiro (1996) no livro “Os Índios e a Civilização”. Os fazendeiros de Caxias “presentearam” um grupo de 50 indígenas com roupas de moradores da vila que haviam contraído a doença. De volta a suas comunidades, os indígenas espalharam o vírus. A epidemia se disseminou rapidamente pelo sertão e atingiu até tribos a 1.800 km de Caxias (Blecher, 2001).
Segundo o censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em parceria com a Funai no ano de 2010, atualmente existem 897 mil indígenas no país, o que representa 29,9% da população que aqui habitava em 1500 (aproximadamente 3 milhões de indígenas). Nesse sentido, é importante destacar que a instrumentalização de armas biológicas em ataques contra comunidades originárias foi continuamente utilizada ao longo da história, tanto pelo Estado quanto pela elite agrária e econômica, sendo implementada até os dias de hoje. Observa-se, portanto, que casos como esse de infecção proposital contra as populações indígenas contribuíram, em conjunto com outros métodos violentos de aniquilação, para o enorme declínio demográfico dos povos autóctones no território brasileiro.
Ditadura: o papel dos órgãos indigenistas na propagação de epidemias letais
O Massacre dos Cinta Larga
As práticas coloniais de extermínio indígena nunca deixaram de ser implementadas contra essas populações ao longo dos séculos. A luta pelo reconhecimento de seus territórios e pelo direito à vida veio sempre acompanhada de conflitos, em sua maioria de viés econômico e agrário, nos quais o Estado e os latifundiários buscam o roubo de terras que não lhes pertencem e a aniquilação dos povos que nelas vivem.
O relatório “Violações de direitos humanos dos Povos Indígenas” de 2014 aponta que cerca 8.000 indígenas de pelo menos dez etnias foram mortos por ações violentas, direta ou indiretamente promovidas pelo Estado brasileiro entre 1946-1988. Nesse período, um dos principais objetivos dos chefes de estado era o desenvolvimento econômico do país e a integração nacional, gerando projetos políticos que envolviam a ocupação e a expropriação de territórios originários.
Nestes anos, o Brasil viveu governos que buscavam o desenvolvimento do país, impulsionando a economia. Sendo caracterizado por grandes obras de infraestrutura, como a construção de rodovias e usinas hidrelétricas. Entre elas estão: a construção da rodovia Belém-Brasília, das usinas hidrelétricas de Três Marias, no Rio São Francisco, e Furnas, no Rio Grande, ambas em Minas Gerais, durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961). No período da ditadura militar (1964 – 1985) tivemos a construção da rodovia Transamazônica (BR-230) e da usina hidrelétrica de Itaipu, no Rio Paraná. Acompanhado de um grande incentivo de colonizar regiões pouco exploradas economicamente (Mendonça, 2016, p. 2).
A maior parte dessas ações, entretanto, estão concentradas nos anos de ditadura militar (1964-1985), tendo relação direta com o Plano de Integração Nacional (PIN), que visava a expansão econômica e fronteiriça do país. Para os militares, as terras indígenas eram vistas como um obstáculo frente ao projeto de modernidade que eles queriam implementar, e, portanto, eram alvo constante de ataques e violações. A violência ocorria principalmente pela invasão de terras, deslocamentos forçados, trabalho escravo, assassinatos, torturas, prisões arbitrárias e propagação de epidemias que vitimaram inúmeros povos originários.
Nesse contexto, temos mais um caso de uso de doenças letais como arma biológica contra os indígenas. Ao longo do período ditatorial, o povo Cinta Larga, que se encontra na divisa dos estados de Rondônia e Mato Grosso, sofreu diversos ataques partindo de seringueiros, empresas mineradoras, madeireiros e garimpeiros, com a conivência e a participação ativa de membros da SPI (Serviço de Proteção aos índios), e mais tarde, da Funai (Fundação Nacional do índio). Como métodos frequentes utilizados para o extermínio dessa população, temos o envenenamento por arsênico, colocado propositalmente na comida dos indígenas por fazendeiros e integrantes da SPI, e a contaminação de doenças letais por meio do contato com brinquedos infectados com o vírus da varíola, da gripe e do sarampo, que eram jogados nas aldeias por aviões.
Além do constante bioterrorismo contra os Cinta-Larga, houve a promoção de uma chacina, conhecida como Massacre do Paralelo 11, que envolveu estupro, tortura e assasinatos em massa extremamente violentos. Deste modo, estima-se que cerca de 3.500 Cinta Larga foram assassinados nessa época.
As ofensivas contra os Cinta Larga continuaram ao longo das décadas, levadas a cabo com o aval de empresas de mineração e colonização que invadiram a área com a autorização da Funai. Em agosto de 1968, ocorreu um conflito com garimpeiros no nordeste do Mato Grosso, em que dez indígenas foram mortos.119 Em 1972, o Parque Indígena Apurinã foi invadido por colonos, causando choques sangrentos com os índios e levando doenças infecciosas. A Funai, no entanto, foi omissa frente à situação de calamidade enfrentada pelos Cinta Larga da região. Técnicos indigenistas revelaram que mulheres Cinta Larga da Aldeia Serra Morena, em Rondônia, estavam sendo prostituídas com a conivência dos funcionários da Funai do posto indígena da aldeia. Os denunciantes afirmaram que os próprios funcionários da Funai mantiveram relações com as índias e que a aldeia passou para um estágio de total dependência e abandono (CNV, v. 2, 2014, p. 238).
O Genocídio Yanomami
A partir da chacina contra os Cinta Larga , foi realizada, em 1967, uma investigação em relação a crimes cometidos pelo principal órgão indigenista da época, o Serviço de Proteção aos índios (SPI), que resultou no “Relatório Figueiredo”, responsável pela denúncia de inúmeros casos de etnocídio, escravização, tortura e roubo de terras de povos indígenas por parte do Estado. Com base no documento, pelo menos 200 funcionários do SPI foram afastados, 134 indiciados, 38 demitidos e 17 encarcerados. Entre os envolvidos nos ataques delatados, estavam generais, ex-ministros, coronéis e o próprio diretor do SPI, o major da aeronáutica, Luiz Vinha Neves, que foi preso por vinculação ao Massacre do Paralelo 11. (Capozzoli, 2004).
O escândalo teve como consequência o fim do SPI e a criação de uma nova entidade governamental, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que deveria superar as atrocidades cometidas pelo órgão anterior. No entanto, a política indigenista da época se manteve atrelada aos interesses governamentais de desenvolvimento e ocupação da região amazônica e do Cerrado, dando respaldo para intervenções estatais e violência contra as populações indígenas.
Sob essas condições, a FUNAI teve suas atribuições limitada e condicionada por uma forte política assimilacionista. Procurou-se reunir os índios em torno de pontos de atração, batalhões de fronteira, colônias, postos indígenas e missões religiosas, com o intuito de isolá-los e afastá-los das áreas de interesse estratégico. O Estatuto do Índio, aprovado em 1973, reforçou o monopólio tutelar, centralizando ações assistenciais, cooptando lideranças indígenas e limitando o acesso de pesquisadores e organizações de apoio às terras indígenas. Reproduziu-se, assim, de várias maneiras os mesmos vícios de origem do SPI (Júnio; Pereira, 2018, p. 45).
Nessa perspectiva, o segundo o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do relatório da Comissão da Verdade demonstra que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR 210), entre o município de Caracaraí e o limite entre os Estados de Roraima e Amazonas, provocou a morte de 354 Yanomami. Na mesma época, as políticas de saúde voltadas para a população indígena por parte dos órgãos indigenistas não ofereciam a proteção necessária à doenças epidemiológicas, propositalmente negligenciando as precauções e os tratamentos que deveriam ser oferecidos no processo de primeiro contato com os povos que viviam na região.
Destaca-se, portanto, o caso ocorrido em 1987, logo após o fim da ditadura, onde Romero Jucá, na época presidente da Funai, foi responsável pela morte de centenas de Yanomamis ao reger a invasão de garimpeiros nas terras ocupadas pelos indígenas, ao mesmo tempo que ordenava a expulsão das equipes de saúde da região, propiciando uma epidemia de malária e gripe. À vista disso, tem-se novamente o uso de doenças infecciosas como projeto de extermínio de povos originários com participação direta de funcionários estatais.
Desse modo, é possível perceber o papel central do Estado brasileiro no genocídio das populações autóctones ao longo de diferentes períodos históricos, tendo como uma das principais características, o legado colonial da aplicação de práticas bioterroristas na promoção da dizimação étnica de diferentes povos indígenas.
Pandemia: Intencionalidade no descaso
Durante a pandemia de Covid-19, que ainda enfrentamos, houveram mais uma vez denúncias de contaminação proposital de indígenas por parte de garimpeiros e madeireiros invasores. A adoção de políticas públicas inadequadas e ineficientes por parte do Estado, também provocou a exposição e contaminação de muitos. A própria Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) foi responsável pelo primeiro contágio de uma agente indígena de saúde, por não ter realizado a testagem adequada de seus funcionários. Além disso, a secretaria também negou atendimento a indígenas que vivem nas cidades, privando cerca de 324,8 mil pessoas de seus direitos. Neste mesmo período, a Funai não tomou medidas significativas para que fosse controlada a invasão de Terras Indígenas, sendo em vários momentos conivente, o que resultou em um aumento das invasões durante os anos de 2020 e 2021, como apresenta o relatório do CIMI: Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021. De acordo com o relatório, no ano de 2021, foram registrados 305 casos de invasões que afetaram 226 terras. Entre as terras afetadas houveram 58 casos de invasão para extração ilegal de madeira, areia e outros recursos naturais, 57 registraram presença de pescadores e caçadores ilegais, 41 casos de garimpo ou danos pela mineração, e 33 Territórios Indígenas afetados pela grilagem ou loteamento de terras.
Alguns dos dados importantes para o entendimento do contexto indígena na pandemia podem ser encontrados na plataforma digital “Covid-19 e os Povos Indígenas”, e foram fornecidos pelo Instituto Socioambiental em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). No ano de 2020 a Funai suspendeu ações assistenciais em Terras Indígenas, alegadamente para diminuir os riscos de contaminação, aumentando a vulnerabilidade dos povos indígenas. A fundação também suspendeu as autorizações de entrada em TIs sem que fosse tomada medidas contra os invasores já presentes nessas terras. Em março do mesmo ano, a Sesai elaborou um plano de contingência, extremamente criticado por apenas reproduzir medidas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de forma genérica, sem consultar os povos ou entrar em detalhes para este contexto específico, ignorando a possibilidade de transmissão comunitária. Em abril, a primeira contaminação notificada de uma jovem indígena ocorreu por um médico da Sesai, a quarentena dos profissionais não estava prevista nas medidas de contingência da secretaria. O processo de deslocamento para o recebimento do auxílio emergencial, concedido pelo governo brasileiro durante os primeiros meses da pandemia, também resultou em contaminações e mortes de indígenas aldeados, que não foram considerados durante o planejamento do benefício.
Os números oficiais não refletem a real situação devido a subnotificação, uma vez que há ausência de dados sobre indígenas que vivem fora de Territórios Indígenas homologados, como os que vivem nas cidades ou aqueles que ainda aguardam o processo de demarcação. Além disso, a falta de compilação dos dados dificulta o reconhecimento de áreas e povos mais afetados.
Diante dessa subnotificação, a APIB realizou um levantamento independente, que mostrava números superiores aos divulgados pela Sesai durante todo o ano de 2020. Os dados da Sesai permaneceram com subnotificação até novembro de 2020, quando os números começaram a passar pela apuração do Comitê Nacional pela Vida e Memória dos Povos Indígenas, criado pela Assembleia Nacional de Resistência Indígena organizada pela APIB.
As ações indiretas do governo federal durante a pandemia, como incentivo às invasões de territórios indígenas, os cortes nos serviços de saúde e assistência essenciais para muitas comunidades indígenas, e o desmantelamento dos órgãos fiscalizadores, entendidas como descaso são tão violentas quanto as ações diretas e intencionais. O discurso carregado de intencionalidade provoca terror e mortes, estas ações políticas que aparentam certa irrelevância, se traduzem nas medidas extremamente prejudiciais e vulnerabilizantes.
Considerações Finais
O uso de armas biológicas visando os interesses da elite agrária em detrimento da preservação da vida das populações autóctones ocorre no país desde a invasão portuguesa, sendo um fenômeno ainda presente. Observa-se, portanto, que o bioterrorismo como ferramenta de aniquilação de povos originários no território brasileiro se apresenta como um legado da colonização.
As relações de dominação e poder que surgiram com o colonialismo não acabaram após o seu fim. Dessa maneira, tem-se a manutenção do processo de apagamento cultural, social e político dos povos indígenas, que têm sua existência agredida por não se enquadrarem no ciclo de produção capitalista imposto por aqueles que detém o poder, consequentemente sendo vistos como empecilho no curso de enriquecimento da burguesia branca.
Trata-se de formas sociais de inexistência porque as realidades que elas conformam estão apenas presentes como obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas (Santos, 2002).
Em suma, a construção de um discurso de não intencionalidade feita por Jared Diamond (1997) em seu documentário serve aos interesses dos colonizadores, ao retirar deles a culpa pelas infecções propositais e atribuir aos “germes”, Diamond ignora como essas doenças foram estrategicamente utilizadas para o genocídio de povos indígenas.
O descaso e a não intencionalidade são narrativas instrumentalizadas pelo governo brasileiro, numa tentativa de disfarçar e amenizar o massacre das populações originárias. Nesse sentido, por mais que os métodos de implementação do bioterror tenham mudado ao longo da história a fim de mascarar os crimes cometidos, é nítido que eles ainda são executados com frequência. Seja através de ações diretas como o envenenamento por agrotóxicos jogados propositalmente de aviões, seja através de políticas de desmantelamento sanitário e discursos de extermínio, a violência promovida pelo terrorismo biológico segue assassinando corpos indígenas.
Referências
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