Para citar esse texto:
MARQUES, Luany; MOTTA, Victoria. A URBANIZAÇÃO ENQUANTO UM PROJETO COLONIAL. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 08 nov 2020. Disponível em: https://decoloniais.com/a-urbanizacao-enquanto-um-projeto-colonial/ Acesso em: *inserir data*
Dadas as tantas violências que assolam milhões de pessoas nos ambientes urbanos da América Latina, entender nossa relação com o espaço em que vivemos é fundamental para repensar formas justas e inclusivas de estruturar as cidades. No dia mundial do urbanismo, propomos a reflexão: a sua cidade foi feita para todos? Como se deu e como se dá o planejamento urbano no Brasil? Como nos relacionamos com nossa cidade e as paisagens ao nosso redor?
O início do processo de colonização no território brasileiro foi baseado nas capitanias hereditárias, em que a Coroa portuguesa com poucos recursos financeiros para custear a exploração delega essa tarefa a “aventureiros” de posses. Com a privatização da colonização, as vilas, freguesias e povoados que começaram a se erguer no Brasil não detinham um grande planejamento urbano, crescendo lentamente a partir de novos estímulos de seus donatários. Dessa forma, temos centros históricos de algumas cidades com traçados irregulares, mas, à medida que o território era “descoberto” e conquistado, essas cidades começam a apresentar uma estrutura de ruas e edificações mais “organizada” (MENEZES, 2013).
Entretanto, uma lenta urbanização, que a todo momento dependia de investimentos do além-mar, não impediu que os padrões europeus fossem centrais no planejamento de nossas cidades. É válido lembrar o teor militar que essas vilas possuíam, isto é, uma vez erguidas, logo já se pensava como melhor fortificar a cidade para proteger o território, seja de invasores europeus ou dos povos indígenas (MENEZES, 2013). Contudo, o que buscamos chamar atenção é que a imposição dos valores portugueses, ou seja, o projeto colonial também encontra espaço na forma em que ocupamos e ordenamos o espaço.
Um exemplo disso é a centralidade da religião católica sendo manifestada pela construção de edifícios religiosos (igrejas, capelas, conventos, mosteiros…), como o marco inequívoco da presença europeia. Assim, uma igreja em um mapa antigo demarca a origem e as fronteiras daquele povoado, uma vez que esse prédio era a referência para os demais, isto é, o núcleo urbano é erguido a partir e em volta dessa igreja. Com isso, há a presença da religião católica em cada pequena aglomeração europeia no Brasil, que é um dos princípios fundamentais para a colonização portuguesa (COSTA, 2008). Além disso, é importante considerar a distribuição das construções pelo espaço: os prédios religiosos, de administração pública e as habitações dos mais abastados eram construídos na parte alta da cidade, enquanto que as áreas comerciais e habitações mais simples ficavam na parte baixa (MENEZES, 2013). Podemos citar, por exemplo, os mosteiros erguidos no Rio de Janeiro com vista privilegiada para a Baía de Guanabara e as igrejas em Ouro Preto e Congonhas, em Minas Gerais.
Essa divisão abriga consequências até os dias de hoje sobre como a cidade é pensada como um espaço de segregação, violentamente naturalizando a centralidade de determinadas áreas em detrimento da marginalização de outras, onde o racismo aparece como elemento central ao definir quais corpos teriam legitimidade para ocupá-las. A urbanização das cidades colonizadas se concretizou, portanto, por meio da territorialização das relações coloniais, e, à medida que o projeto civilizatório se concretizava na transformação e ocupação dos territórios, em sua estrutura foram incorporadas hierarquias caras às colonialidades do poder, do ser e do saber.* Foi ao observar esses padrões de poder que o sociólogo cubano Yasser Farrés Delgado (2020) cunhou o conceito de colonialidade territorial para descrever como os modelos arquitetônicos e urbanos globalizados reproduzem a hegemonia de concepções ocidentais sobre a divisão e ocupação de territórios.
Mais do que um processo de conquista de território, a colonização visava essencialmente a extração de riquezas das áreas invadidas. O avanço dos meios capitalistas de exploração dos territórios colonizados dependia da organização desses espaços para melhor concretizá-la, assim como da subordinação dos povos colonizados enquanto mão-de-obra para enriquecimento dos colonos. Assim, as cidades foram sendo estruturadas a partir do fluxo de riquezas que tornava nobre as áreas ocupadas pelos beneficiários desse sistema e a marginalização social de grupos explorados refletiu na marginalização espacial destes. Definidos a partir de uma lógica de raça, tratados como objeto ou mercadoria, foram submetidos, no princípio da colonização, os indígenas, seguidos dos negros escravizados, e, desde o início do projeto moderno de urbanização, os pobres urbanos (VELLOSO, 2020). Negados enquanto pertencentes aos espaços belos e prósperos, no sistema urbano moderno/colonial, ocupam áreas que não são pensadas para conferir-lhes conforto, qualidade de vida, ou mesmo permitir-lhes exercer uma concepção própria/tradicional de uso e ocupação de seu território. São áreas estas “concedidas” apenas para que existam, independente das condições de vida ou morte de seus habitantes ou da estética de seus espaços.
Isso porque, para que funcione esse modelo de exploração, a existência da periferia se faz necessária. Por isso, ano após ano, no Brasil, vemos se aprofundar o abismo da diferença sócio-espacial “na qual a elite rica habita bairros restritos e as periferias abrigam uma pobreza cruel” (VELLOSO, 2020, p. 157), fruto de padrões colonialistas de poder. O resultado é uma condição de emergência contínua que assola as periferias das metrópoles brasileiras, vítimas da ausência de infraestrutura básica de saneamento e saúde, de moradias precárias, do racismo ambiental, da insegurança alimentar entre outras violências.
O fundamento dos modelos urbanistas frutos da lógica de subordinação colonialista/capitalista têm a cidade como objeto da racionalidade ocidental e da manutenção de padrões de poder territorial. Essa estrutura urbana, para ser edificada, dependia do distanciamento de culturas preexistentes que exerciam maneiras outras da relação corpo-território. Nesse sentido, Delgado (2020) define a colonialidade do “ser urbano” como a “hegemonia dessa forma de existência em relação ao restante das formas de ‘ser não-urbano’”, podendo ser estas desde as formas camponesas, tradicionais, nômades, indígenas, até os seres não humanos.
Pensar a urbanização enquanto desdobramento do projeto de colonização nos permite identificar as raízes profundas de inúmeros problemas e violências estruturais da questão urbana, sobretudo no Brasil. O objetivo dessa breve análise é instigar o uso de lentes decoloniais para observar os espaços que habitamos e a nossa própria inserção dentro desse sistema de assimetrias globais. Mais além, “o pensamento de/descolonial sobre a questão urbana implica desdobrar essa crítica à generalização das formas da megalópole e da megacidade que suprime arranjos territoriais locais ou mesmo apaga modos tradicionais de vida urbana” (VELLOSO, 2020, p. 157), uma chave para reverter as tantas formas de exclusão social.
Referências
COSTA, A. A cartografia do período colonial brasileiro e a Igreja Católica. Visões Urbanas – Cadernos PPG-AU/FAUFBA, v. 5, n. especial, 2008.
MENEZES, L. A Corte Portuguesa e o Urbanismo Colonial no Brasil. XIV Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia. Departamento de Historia de la Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, 2013.
FARRÉS DELGADO, Y., CUNHA, G.R. e NAME, L. Yasser Farrés Delgado: por um diálogo latino-americano sobre colonialidade, arquitetura e urbanismo (entrevista). Redobra, n. 15, ano 6, p. 87-107, 2020.
VELLOSO, R. De/descolonizar o urbano, insurreição nas periferias: notas de pesquisa. Redobra, n. 15, ano 6, p. 153-176, 2020.