Para citar esse texto:
DEODATO, Brena; ZAPHIRO, Emily. A RAIZ COLONIAL NA PRECARIZAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA DOS IMIGRANTES BOLIVIANOS. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 15 out 2022. Disponível em: https://decoloniais.com/a-raiz-colonial-na-precarizacao-da-qualidade-de-vida-dos-imigrantes-bolivianos/ Acesso em: *inserir data*
Introdução
O objetivo deste texto é trazer atenção aos resquícios da colonialidade na América Latina em especial, olhando para a estrutura de recepção de migrantes bolivianos no Brasil. Ao chegar ao Brasil, essas pessoas encontram desafios na entrada e posição no mercado de trabalho estando sempre, independente do grau de escolaridade, em posições subalternas comparadas aos brasileiros ou outros imigrantes de nacionalidades mais ‘’desejáveis’’. Também vamos discutir sua representação na mídia e seu desenvolvimento na esfera política. É interessante observar como essas comunidades afetam a população local, levando em conta seus impactos positivos e negativos, assim como sugestões de ação conjunta para repensar a construção do Outro boliviano no contexto brasileiro.
Para exemplificar, trouxemos comparações com outros grupos de imigrantes como os portugueses e constatamos que os bolivianos possuem dinâmicas diferenciadas como a barreira do racismo, aporofobia e xenofobia. Essa comparação é necessária para entender que historicamente os bolivianos sofrem mais com resquícios do colonialismo no território brasileiro – em especial em seu maior local de concentração: a Capital Paulista. Isso ocorre pois a cidade de São Paulo é mais marcada pela cultura ocidental moderna. Ao analisar as denúncias de racismo e xenofobia, percebemos que a proximidade da cultura boliviana com a influência indígena faz com que os imigrantes advindos desse país herdem diversos mitos de cunho racista que estão presentes no imaginário brasileiro. Uma vez que essa relação esteja estabelecida, vamos desdobrar a teoria de que a coluna vertebral desses problemas é o colonialismo e o papel que a colonialidade do Ser, do Saber e do Poder cumprem na construção dessas percepções.
Perfil do Migrante
A Bolívia é um país da América do Sul que faz fronteira com o Brasil nos estados do Acre, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. E, na Bolívia, nos departamentos de Pando, Beni e Santa Cruz. A configuração geográfica do país se caracteriza por grandes altitudes, diferente do Brasil, inclusive, faz parte da Cordilheira dos Andes. Outra diferença relevante em relação ao Brasil é que 55% da população se autodeclara Indígena (diversos, entretanto destacam-se em proporção os Quechuas e Aymaras) e 35% Mestizo – um grupo étnico que é a mistura de Europeu com indígena – deixando apenas 7% da população se identificando como Brancos (PACIEVITCH, 2022). Esse fator é interessante para compreender muitos aspectos culturais bolivianos como a vestimenta, cosmovisão, festas tradicionais, comidas típicas e relações sociais.
O deslocamento de bolivianos em direção ao Brasil se tornou mais significativo durante a década de 1950. Geralmente o que motiva a migração dos bolivianos seria a busca por melhores condições de vida para si ou para sua família. Hoje em dia, muitas pessoas são atraídas para vir ao Brasil através de aliciadores para trabalhar na indústria têxtil. Por conta desses aliciadores, no imaginário de muitos bolivianos, o Brasil é um país rico de oportunidades, com uma população hospitaleira (SILVA, 1995).
Contudo, observamos uma divisão entre os papéis que os imigrantes bolivianos ocupam no mercado de trabalho de acordo com a sua escolaridade. Geralmente, essas pessoas, quando formadas em Medicina, Odontologia, Engenharia e etc, buscam emprego nessas áreas, entretanto, com um baixo piso salarial comparado aos colegas de profissão que são cidadãos brasileiros. Muitas vezes essas pessoas trabalham sem contrato regulamentado. Esse problema poderia ser resolvido se houvesse facilitação no processo de validação dos diplomas desses profissionais.
Há também os imigrantes de origem rural que estavam habituados à organização comunitária independente como os “’ayllu’’ (cultura preservada desde o império Inca), e que uma vez em território Brasileiro, tiveram que se adaptar à dinâmica capitalista das grandes cidades. Estes costumam atuar no mercado informal, especialmente na área da costura. Explica-se a seguir:
A reestruturação dessas comunidades camponesas no Brasil, especialmente em São Paulo, se fez sob duras penas. A maioria, clandestinos e acostumados a uma vida comunitária, tiveram seus laços culturais desestruturados e tornaram-se presas fáceis da exploração dos grupos industriais, submetendo-se à uma vida de servidão (LEMOS, 2015, p. 3).
Essa servidão seria uma condição imposta há muitos séculos com a colonização, onde se criou uma divisão racial do trabalho e os povos indígenas tiveram que se submeter a uma condição subalterna em relação aos invasores europeus (QUIJANO, 2005). Essa divisão de raça/trabalho foi completamente normalizada se perpetua até hoje, se tornando visível quando comparamos os dois maiores grupos de imigrantes residindo na capital paulista: Bolivianos e Portugueses (vamos explorar essa comparação na última seção). Anibal Quijano (2005), ao falar da colonialidade, explica as consequências da criação do conceito de “raça’’.
Desse modo, impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho. Na área hispânica, a Coroa de Castela logo decidiu pelo fim da escravidão dos índios, para impedir seu total extermínio. Assim, foram confinados na estrutura da servidão. (…) Por outro lado, os negros foram reduzidos à escravidão. Os espanhóis e os portugueses, como raça dominante, podiam receber salários, ser comerciantes independentes, artesãos independentes ou agricultores independentes, em suma, produtores independentes de mercadorias. Não obstante, apenas os nobres podiam ocupar os médios e altos postos da administração colonial, civil ou militar (QUIJANO, 2005 p. 118-119).
Pólos Migratórios
As principais regiões que recebem essa categoria de migrantes são, respectivamente, São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Corumbá (MS) e Guajará-Mirim (RO), sendo as duas últimas destacadas por compor regiões fronteiriças com a Bolívia. Ademais, a cidade de Corumbá, no sudoeste brasileiro, também é importante pois faz parte da rota preferida dos Bolivianos para chegar ao Brasil. Muitos que se estabelecem em São Paulo (de maneira temporária ou não) optam por passar por fronteiras terrestres pelo baixo custo e a falta de fiscalização, já que mecanismos do Estado Brasileiro buscam remover os imigrantes sem documentação. Aqui é necessário refletir acerca da criação de fronteiras invisíveis e como elas se tornaram ameaças no imaginário brasileiro.
Entretanto, em 2019, foi realizada uma pesquisa que demarcou a ultrapassagem da quantidade imigrantes advindos da Bolívia em comparação aos portugueses (Dados da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania). Ou seja, atualmente os bolivianos são a maioria dos imigrantes na capital paulista. Esse crescimento também demarca a consolidação da estrutura cultural, comercial e de uma rede de suporte que os imigrantes construíram, formando uma comunidade.
Em conformidade, uma reportagem do portal de notícias G1 (2020) diz que “[s]e hoje a comunidade boliviana criou raízes na cidade, há 12 anos era uma das que mais precisava de ajuda. Naquela época, 90% dos imigrantes atendidos pelo Centro de Atendimento e Referência para Imigrantes (Crai) da Prefeitura vinham da Bolívia”.
Ao vir para São Paulo, muitas vezes são convidados por aliciadores (brasileiros, bolivianos e coreanos) que prometem um salário alto e ajuda de custo nos primeiros meses. Infelizmente, os trabalhadores contraem muitas dívidas – de deslocamento, alimentação, documentação e moradia – e se submetem a condições de trabalho insalubres e análogas à escravidão. Na indústria têxtil, grandes empresas – entre elas Zara, Marisa, Via Veneto, Pernambucanas, M.Officer – procuram oficinas de costura de pequenos e médios empresários que utilizam dessa mão de obra para baratear o custo de produção. ‘‘Nesse caso, as regras de trabalho são permeadas por relações de parentesco e amizade, ensejando, assim, espaço para a subjugação dessa mão-de-obra, sobretudo das mulheres’’ (HARVEY, 1992, p. 146, apud SILVA, 2006, p. 161). Devido a essas dívidas, e também por não possuir documentação de residência e trabalho em território brasileiro, os migrantes bolivianos ficam expostos a abusos, ameaças de denúncia e negligência.
Os brasileiros frente aos imigrantes
De acordo com Baeninger (2012), a relação dos brasileiros com os bolivianos foi caracterizada com um certo nível de facilidade, pois eles enxergam o povo boliviano como trabalhadores. Os bolivianos, por conta da sua jornada de trabalho, possuem pouco tempo para desfrutar de lazer. Normalmente ficam mais limitados aos bairros tradicionais, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cambuci, Mooca. Também ficam nas praças que abordam a cultura do país, com músicas e danças da região, comidas típicas.
Pucci (2012) categoriza os sujeitos que enxergam o imigrante em 3 tipos: sujeito fanático, sujeito sútil, sujeito igualitário. O primeiro é o tipo radical que tende a ver o boliviano como escravo e, por conta dessa condição, eles são considerados inferiores. Já o segundo seria uma versão mais controlada do sujeito fanático: eles o veem como trabalhador, mas submetido à uma condição de trabalho subalterna, então tendem a enxergar com piedade. Por fim, o terceiro reconhece a autonomia dos bolivianos e, mesmo com a condição trabalhista análoga à escravidão, julgam que os imigrantes sabem o que estão fazendo.
Apesar de o Brasil ser o quarto maior país a receber imigrantes nascidos na América Latina, ainda possui baixa adesão se comparado com os outros estrangeiros (BAENINGER, 2012). Logo, é possível observar o afastamento no ambiente escolar de crianças e adolescentes pelo fato dos bolivianos falarem espanhol. Além disso, os traços indígenas fortes são um aspecto de estranhamento para os jovens brasileiros, por não termos aproximação da história/cultura com nossos povos nativos e nem conhecimento sobre a cultura das populações vizinhas às nossas. Isso causa um desconforto a quem não está acostumado a conviver com diferentes culturas além da predominância de preconcepções relacionadas aos povos nativos como sujeitos incultos, ignorantes, selvagens e não-civilizados, tornando-se concreta a criação da imagem do Outro atrelada a esses imigrantes.
Na mídia, é possível notar a criação e/ou perpetuação de uma narrativa envolta dos bolivianos como povo “sofrido”, “escravo”, “necessitado” e “trabalhador”. De um lado, essa visão pode até parecer positiva, entretanto, ela cria intrinsecamente uma visão de que os bolivianos são inferiores. Isso é mostrado em diversas reportagens veiculadas em jornais de grande circulação como G1, Folha de São Paulo, além de reportagens televisivas. Ademais, diversas vezes, mesmo quando há intenção de mostrar a cultura das pessoas bolivianas, cria-se um tipo de chacota em cima dos seus aspectos. Estes seriam as roupas tradicionais das cholitas, como a pollera, comidas típicas como cuy al horno (carne de porquinho da índia), chuño (batata desidratada). Um dos maiores alvos são as festividades como o carnaval, festa das Ñatitas, festa tradicional paceña onde se cultuam os mortos, Festa de Alasitas, que, aliás, é bem celebrada em São Paulo, essa festa é dedicada a atração da prosperidade onde se fazem “simpatias’’ para atrair bens. A Secretaria Especial de Comunicação (SEC) de São Paulo postou uma matérias escrevendo a festividade como uma “mistura de celebração cristã e pagã, a festa tem como símbolo maior Ekeko, uma figura mística, conhecida no “Kollasuyo” (…) e representada por um homem pequeno e gordinho considerado a divindade da riqueza.” (SEC, 2020). Todos esses aspectos possuem origens pré-hispânicas que foram conservadas durante muitos séculos mesmo durante a colonização. Contudo, para muitos brasileiros elas seriam representações pagãs, sem valor e que fogem aos padrões estéticos instituídos pela cultura ocidental.
Em seu livro, Baeninger (2012, p. 95) narra diversos casos de racismo, xenofobia e aporofobia que alguns bolivianos sofreram no Brasil, alguns até direcionados a crianças que ainda não falam português recém matriculadas em escolas. A violência verbal muitas vezes vem de estranhos na rua, ou pode possuir uma identidade mais institucional, como a falta de empatia de agentes de saúde. Acima de tudo, é importante lembrar que a hostilidade desses brasileiros é causada por uma visão marcada pela colonialidade e construção da narrativa do Outro em um povo cujas tradições são enormemente pautadas em culturas pré-hispânicas que ocupam aquela região (Bolívia) significativamente até hoje.
Um exemplo aconteceu em 2021, um boliviano foi parado pela Polícia Federal ao ser encontrado ‘’transportando uma ossada’’ numa viagem de ônibus . A polícia se espantou ao encontrar um crânio na bagagem de mão do viajante, apreendendo o pertence e levando o viajante à delegacia. Acontece que era a ñatita de seu irmão mais velho, já falecido. É comum na Bolívia guardar o crânio de entes queridos falecidos para trazer boas bênçãos e prestar homenagens nas datas especiais. De acordo com o jornal G1 Notícias, ‘’[o] homem foi autuado pelo crime do artigo 17, da Lei 9434/97, que considera ilegal o transporte ou recolhimento de partes do corpo humano sem saber a procedência.’’
Quantas vezes mais a colonialidade vai aprisionar pessoas por manterem as culturas nativas vivas neste continente? Esse episódio nos lembra que a lei brasileira é falha com os povos indígenas. Na verdade, é bom lembrar que os bolivianos de origem indígena andina ainda assim não são considerados indígenas pelo Estado brasileiro, pois os aymaras e quechuas, por exemplo, não se encontram com território demarcado no Brasil. Contudo, eles são percebidos como indígenas pelos brasileiros e não deixam de sofrer racismo. É dessa maneira que a colonialidade do saber age, ao dominar os aparatos do Estado, instituindo uma visão limitada da existência sob a perspectiva do Homem Europeu, se sobrepondo aos povos colonizados.
A concepção e imagem de mundo dos europeus cristãos era apenas a sua própria concepção e imagem de mundo, e não a representação de uma ontologia geohistórica do mundo. Isso é o que a colonialidade do saber significa, e como a colonialidade do saber orienta tanto projeções geopolíticas e subjetividades corpo-políticas (ex: nossos sentidos, nossas emoções, nossas cosmovivências) (MIGNOLO e WALSH, 2018 p. 195, tradução própria).
Integração na Capital: O legado cultural dos imigrantes
O bairro do Bom Retiro ficou conhecido por ser residência e polo comercial da comunidade boliviana em São Paulo. Apesar da maior concentração nos bairros tradicionais já supracitados, eles estão presentes em todas as regiões da Capital e arredores. Talvez, hoje, o centro cultural mais famoso de bolivianos em São Paulo seja a feira que acontece aos domingos na Praça Kantuta, lá ocorrem apresentações de danças típicas como os Caporales, Tinku, Salay e etc. Há a feira de vendas de produtos bolivianos, comidas, chás e artesanatos com o famoso tecido indígena Awayo. Conta-se, também, com a venda de refeições ricas: Sopa de Maní, Salteñas, Chicharrón e Salchipapas. A fundação da praça se deu após a expulsão do grupo da Praça Padre Bento após alegações que a feira dos Bolivianos estava degradando a vizinhança, bem como outras alegações de cunho discriminatório. Atualmente, a praça Kantuta representa um local onde os migrantes podem expressar livremente sua cultura e criar laços com a comunidade. Durante os importantes feriados e datas tradicionais como a festa de Alasitas, Carnaval de Oruro etc, esse espaço seguro para comunidade deve ser preservado e defendido.
Sobre as organizações nascidas no seio da comunidade boliviana, destacam-se a ADRB (Associação de residentes Bolivianos), o projeto Sí, Yo puedo!, bem como coletivos como Equipe de Base Warmis: convergência de culturas e Cholitas da Babilônia, veículos de comunicação como a Rádio Bolívia FM e Rádio Andamarca Bolívia. De organizações não governamentais mais conhecidas, temos o trabalho da Pastoral do Migrante, Cáritas e Abraço Cultural. Essas organizações realizam trabalhos e oferecem serviços em diferentes áreas para suprir as necessidades da comunidade boliviana, sejam elas assessoria jurídica, tradução e interpretação, arrecadação de cestas básicas, roupas ou insumos, organização política ou cultural, comunicação etc.
Por exemplo, ainda durante a pandemia, o Coletivo Cholitas da Babilônia organizou uma rifa para arrecadar dinheiro para comprar cestas básicas à famílias bolivianas na cidade. A Equipe de Base Warmis constantemente organiza aulas e participa de painéis para debater assuntos como preconceito, maternidade imigrante e saúde de mulheres migrantes, inclusive, em Junho de 2022 o @debatespced recebeu a mediadora intercultural e uma das fundadoras do grupo Jobana Moya Aramayo para uma Live sobre atividade local e sua importância nas Relações Internacionais. Ou seja, a comunidade boliviana no Brasil impacta pessoas de dentro e de fora dela, contribuindo com a principal ferramenta para a desconstrução da modernidade colonial: a posse das narrativas de sua própria história.
A Raiz Colonial do Problema: Bolivianos X Portugueses
A migração boliviana no Brasil é uma migração marrom (ver vídeo ‘’Identidade Marrom’’). Isso significa que os imigrantes no contexto racial brasileiro são percebidos como não-brancos. Consequentemente, também uma migração que mostra ter laços com a cultura indígena (Quechuas, Aimaras, Guaranis e etc). Isso fica claro ao analisar as festas típicas da comunidade boliviana em São Paulo (Alasitas, Carnaval e etc), além da feira aos domingos na Praça Kantuta. Por isso, além do racismo, a distinção cultural dos bolivianos provoca estranhamento nos brasileiros e claramente desperta estruturas erguidas pelo colonialismo e perpassadas pela colonialidade. A seguir, vamos explorar alguns eixos problemáticos em que isso se manifesta: seja pela estética (como vestuário), religião, festividades, relações sociais, socialização e comparação com outros grupos de imigrantes.
No texto de Freitas (2015), a autora propõe uma análise comparativa de imigrantes portugueses e bolivianos na perspectiva racial. Ao analisar grupos vindos no século XX e início de XXI, ela constatou que, dentro do sistema racial brasileiros, os “portugueses são brancos e bolivianos são indígenas, ou não-brancos; o que tem implicações consideráveis” (FREITAS, 2015, p. 7).
Acrescentamos que a aproximação de brasileiros e portugueses se dá também pelo fato de ambos serem países lusófonos, onde cabe-se observar que esse aspecto também é resultante de uma configuração histórica de base colonial. Freitas (2015) também vai contar que a migração portuguesa aconteceu pela crença comum de que o Brasil faz parte de Portugal. Em resumo, a autora viu nos imigrantes portugueses uma rápida ascensão e integração à sociedade paulista, destacando vantagens como: o fato de falarem o idioma nativo, possuírem documentação de trabalho e o fato de serem brancos. Já os imigrantes bolivianos, apresentam um perfil difícil de ser mensurado, já que a maioria vem indocumentada, porém, são percebidos pelos paulistanos como indígenas (FREITAS, 2015).
Além da xenofobia ser mais recorrente por conta do fenótipo perceptível e pelo fato do português (quando dominado) ser a segunda língua desse grupo, a aporofobia também faz parte dos desafios enfrentados pelos bolivianos em São Paulo. Por fim, a autora destacou as diferentes áreas de atuação desses dois grupos de imigrantes: enquanto os portugueses preferem trabalhar de maneira autônoma, no comércio (padarias, barbearias, mercearias e etc), os bolivianos acabam indo para indústria têxtil, trabalhando informalmente – e, consequentemente, de maneira vulnerável – no ramo da costura. Diferentemente dos imigrantes portugueses, os bolivianos não têm problemas em trabalhar como empregados e quando são comerciantes trabalham na informalidade” (FREITAS, 2015, p. 16).
Essas dificuldades desproporcionais mencionadas acima serão essenciais para traçar uma visão de futuro para ambos os grupos, a desigualdade fica explícita uma vez que “todos os entrevistados (portugueses) mencionaram com orgulho o fato de seus filhos e filhas estudarem, alguns inclusive frequentarem a universidade, algo muito difícil no contexto boliviano’’ (FREITAS, 2015, p. 16).
Neste texto, procuramos enfatizar que a diferença grotesca na integração dos bolivianos no Brasil, em especial em São Paulo, acontece por conta da colonialidade. A colonialidade seria a estrutura deixada para trás pelo colonialismo, e essa estrutura pode ser percebida através da continuidade dos estereótipos criados acima destes imigrantes, das inúmeras denúncias de racismo, xenofobia e abuso, e também das dificuldades ao enfrentar as barreiras institucionais que os bolivianos encontram na tentativa de se estabelecer no Brasil, como por exemplo, falta de documentação, trabalho regulamentado e de conseguir ter acesso à educação.
A seguir, sugerimos a reflexão em como o colonialismo afastou povos que viviam literalmente lado a lado numa escala onde eles mal se reconhecem hoje em dia. Isso foi constatado em estudos como o supramencionado, onde um país de outro hemisfério é considerado companheiro de laços culturais do Brasil (como Portugal), porém um país fronteiriço, como a Bolívia, não. Durante o processo do colonialismo e posteriormente da colonialidade, a cultura boliviana se tornou estranha e, por ser de origem indígena, recebeu características como bárbara, atrasada e selvagem. Isso se trata da colonialidade do saber, conceito desenvolvido por Walter D. Mignolo (2018), onde se entende que os europeus puseram seus saberes, seu entendimento de existência no topo como único e irrefutável. Fazendo com que:
[a] forte crença que o seu conhecimento cobria a totalidade do conhecimento trouxe a necessidade de desvalorizar, diminuir e calar qualquer outra totalidade que possa colocar em perigo o totalitarianismo epistêmico no processo (MIGNOLO, 2018 p. 195).
Ao fazer isso, sobrepuseram-se acima de todos os outros povos e, ao redor dos séculos com a colonização, foram instituindo projetos de apagamento cultural, separação dos povos através da imposição de outros idiomas, fronteiras invisíveis e barreiras migratórias como a cidadania e vistos etc.
A falta de conhecimento sobre sua própria história faz os brasileiros se sentirem muito distantes desses povos originários, nas escolas e nas instituições de ensino superior sempre são validados os saberes e experiências europeias. Ao contar da história do Brasil, o ponto de partida sempre é na chegada dos colonizadores, instituindo uma narrativa unilateral onde deveria ter havido um diálogo intercultural:
O sistema de poder global, capitalista, moderno colonial, que Anibal Quijano caracteriza como tendo início no século XVI nas Américas e em vigor até hoje, encontrou-se não com um mundo a ser estabelecido, um mundo de mentes vazias e animais em evolução. Ao contrário, encontrou-se com seres culturais política, econômica e religiosamente complexos: entes em relações complexas com o cosmo, com outros entes, com a geração, com a terra, com os seres vivos, com o inorgânico, em produção; entes cuja expressividade erótica, estética e linguística, cujos saberes, noções de espaço, expectativas, práticas, instituições e formas de governo não eram para ser simplesmente substituídas, mas sim encontradas, entendidas e adentradas em entrecruzamentos, diálogos e negociações tensos, violentos e arriscados que nunca aconteceram (LUGONES, 2014, p.941).
Já no eixo da colonialidade do poder, existe um mito social que dita que a Europa é melhor que a América Latina, por isso os imigrantes europeus são desejados e os latino-americanos não. É possível ver isso na pesquisa de Freitas (2015), em que, durante suas entrevistas, os imigrantes portugueses afirmam que escolheram vir ao Brasil porque ainda “faz parte” de Portugal – verificando a existência da colonialidade. Os entrevistados também contaram que esse pensamento também está presente nos brasileiros, como no trecho abaixo:
(…) famílias paulistanas abastadas preferiam moças portuguesas para trabalharem em suas casas, principalmente como babás, pois falavam corretamente português e eram “muito sérias” e não seriam dadas a ausências ou namorados, como as brasileiras (FREITAS, 2015 p. 13).
A concretização da colonialidade do poder em massa pode ser observada através dos números, em que bolivianos dominam o campo de trabalho informal (Ver tabela 1). Por outro lado, de acordo com Freitas (2015), nos anos 50, os portugueses encontram trabalho muito rápido ao chegar ao Brasil por conta da “Carta de Chamada” que seria uma espécie de permissão para trabalho. Os impactos que essa disparidade de direitos têm a longo prazo são a impossibilidade de ascensão social por parte dos bolivianos, que relataram que seus filhos dificilmente conseguiram terminar os estudos, ao contrário do relato dos portugueses que imigraram no mesmo período.
A colonialidade do Ser, desenvolvida por Nelson Maldonado Torres (2003), também possui um papel nesse setor, onde desumaniza os imigrantes, colocando-os em posição subalterna na hierarquia social brasileira. Essas representações seguem o imaginário de um índio (mau selvagem), preguiçoso, burro – por não saber falar “direito”, que usa drogas e que adora deuses desconhecidos. María Lugones (2014, p. 936) nos conta que:
[s]ó os civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens.
A colonialidade do ser fere diretamente o imigrante boliviano, uma vez que, além das barreiras institucionais, e sociais, eles também ficam expostos à violências íntimas que vagam de acordo com a interpretação das suas subjetividades.
Considerações Finais
Ao reconhecer que os imigrantes não são recebidos de maneira igualitária no Brasil, propomo-nos a identificar quais são as principais divergências entre experiências de grupos diferentes de imigrantes (portugueses e bolivianos). Ao fazer isso, também foi oferecida uma análise da perspectiva decolonial que sugere a colonialidade como a raiz dos problemas, exemplificando a presença da colonialidade do Ser, do Saber e do Poder nas experiências dos imigrantes bolivianos.
O combate às estruturas coloniais não é fácil. De fato, é desafiador desatar-nos e de(s)colonizar paradigmas e narrativas que existem há séculos. Entretanto, acreditamos que a democratização da informação é capaz de produzir resultados efetivos. É muito desejável que a cultura boliviana seja mais estabelecida, de maneira respeitosa, na sociedade brasileira e, com isso, os imigrantes se sentirão mais integrados no seu novo espaço, a população local também poderá se tornar mais suscetível a receber bem esses imigrantes, criando um ambiente mais propenso a causar mobilização política a favor das causas, como a regularização dos imigrantes sem documentos. Nesse setor, destaca-se a atuação dos atores citados em nosso tópico ‘’Integração na Capital: Legado Cultural dos Imigrantes’’.
Quanto à difusão da teoria de maneira mais acessível para alcançar os problemas estruturais deixados pela colonialidade, é possível citar a atuação do grupo de pesquisa e extensão Debates Pós Coloniais e Decoloniais (IRID/UFRJ), que procura desenvolver projetos e eventos para envolver a sociedade civil nas discussões acerca dos temas que ajudam a (re)construir uma visão de mundo e sociedade, aliviando o peso da colonialidade e como ela afeta os indivíduos subalternizados. Ao desafiar a constelação de autores clássicos dentro da academia, esse grupo ajuda os alunos de diversas áreas do conhecimento a se enxergarem dentro da periferia do sistema internacional, voltando sua atenção para problemas locais a partir de narrativas locais também. Neste caso, ajudando as pessoas alcançadas a voltar a se localizar dentro da colonialidade, saber identificar quem são, e com quem se relacionam (por exemplo, brasileiros e seus vizinhos latino-americanos) através de outros olhos, buscando, assim, dissolver as barreiras do racismo e as preconcepções relacionadas aos povos indígenas e seus descendentes.
Referências
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