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A QUESTÃO DA FOME NO BRASIL

O artigo 6º da Constituição Federal de 1988, considera a alimentação como um direito social e garante uma renda básica para todo e qualquer sujeito que se encontre em situação de vulnerabilidade (BRASIL, 1988). Além disso, em 15 de setembro de 2006, foi criada a Lei nº 11.346 que instituiu a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional cujo objetivo é assegurar o direito à alimentação adequada a todos os sujeitos que se encontrem em solo nacional. Entendendo que a alimentação é um direito fundamental, sendo uma responsabilidade de todas as esferas do poder público a criação e adoção de políticas que venham atenuar a falta de acesso à alimentação e trazer uma variedade de alimentos para a mesa da população em todo território nacional (BRASIL, 2006).

Embora tenhamos uma Lei (BRASIL, 2006) que garante a alimentação adequada, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado nos anos de 2021/2022, revelou que 125,2 milhões de brasileiros estão em algum grau de insegurança e 33,1 milhões de pessoas estão com insegurança alimentar grave, ou seja, estão passando fome (II VIGISAN, 2022). Sendo assim, o objetivo deste texto é analisar a ideia de insegurança alimentar a partir dessas novas pesquisas e tecer comentários com base nas abordagens interseccionais. Ao fazer isso, nossa preocupação é revelar como a insegurança alimentar não afeta a todos os indivíduos da mesma maneira, revelando que o local onde os sujeitos ocupam na hierarquia social influencia diretamente no acesso a alimentação e a renda.

(Des)encontros entre a insegurança alimentar e a interseccionalidade no Brasil contemporâneo

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais conhecida como Rede PENSSAN, formada por pesquisadores, professores, estudantes e profissionais da área, o inquérito contou com o apoio de diversas instituições. As informações foram coletadas entre os meses de novembro de 2021 e abril de 2022, sendo entrevistada 12.745 lares brasileiros, em 577 municípios, sendo estes rurais e urbanos, em todo território nacional (II VIGISAN, 2022).

É importante ressaltar a utilização da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) para classificar se um indivíduo ou um lar está com algum grau de insegurança alimentar. A EBIA utiliza de oito perguntas base e, a partir das respostas afirmativas, é possível identificar se o lar está com insegurança alimentar e qual é o grau dessa insegurança. Com o objetivo de serem mais objetivas, as perguntas possuem como respostas “sim”, “não” e “não sabe/não respondeu”, em que a resposta afirmativa para cada pergunta caracteriza um agravamento da sua situação, isto é, quanto mais “sim” o sujeito responder, mais grave é a sua situação.  

As perguntas realizadas são baseadas na EBIA (2014):

      • Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?
      • Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada? 
      • Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?
      • Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou? 
      • Nos últimos três meses, algum/a morador/a de 18 anos ou mais de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida?
      • Nos últimos três meses, algum/a morador/a de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, comeu menos do que achou que devia, porque não havia dinheiro para comprar comida?
      • Nos últimos três meses, algum/a morador/a de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida?
      • Nos últimos três meses, algum/a morador/a de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida?

Se uma pessoa está em segurança alimentar, isso significa que ela respondeu “não” para as oito perguntas realizadas. A insegurança alimentar leve se caracteriza com a afirmativa de 1 a 3 das perguntas. Já a Insegurança Alimentar Moderada as respostas com afirmativas positivas são entre 4 a 5 as perguntas realizadas. Por fim, a Insegurança Alimentar Grave acontece quando o sujeito responde “sim” para 6 a 8 das perguntas.

Saber como cruzamento ou encontro de uma ou mais características do sujeito influencia na sua vida social e no acesso é fundamental quando falamos de alimentação. Embora as mulheres saibam o que é sofrer com o machismo, nem todas sabem como é sofrer com o machismo e o racismo ou nem todas já experienciaram a lesbofobia, uma vez que cada mulher possui característica, ou marcadores sociais, que tocam no gênero, mas também em outras características. Quando os dados revelam que as mulheres negras ou não-brancas são as que mais passam fome, estamos falando que um grupo de mulheres específico experienciam não só o machismo, mas também o racismo. Quando tratamos de intersecção de raça e gênero, estamos falando justamente desse cruzamento de opressão, um encontro do machismo com o racismo e com a classe, estamos falando que embora todas as mulheres sofram com o machismo, não são todas que sofrem com o racismo e com a falta de acesso a renda. Analisando o encontro de raça e gênero, percebemos que a questão se agrava ainda mais. Isso porque a pesquisa revelou que a fome tem cor e gênero bem definidos, as casas chefiadas por mulheres negras são as que mais sofrem de insegurança alimentar, uma vez que aproximadamente 65% desses lares estão com algum grau de insegurança. Além disso, 18,1% dos lares onde mulheres negras chefiam estão convivendo diariamente com a fome (II VIGISAN, 2022).

Faz-se necessário abrir um parêntese para explicar o que seria a perspectiva interseccional e sua importância para o tema que estamos tratando. Nascida na década de 90, a perspectiva interseccional é fruto do pensamento feminista negro que buscava analisar o cruzamento entre raça, gênero e sexualidade, analisando experiências que antes eram vistas e estudadas de forma isoladas. Temos no século XX, e ainda no século XXI, na agenda feminista a luta por direito ao voto, ao trabalho fora de casa, direitos trabalhitas igualitários e direitos sexuais. Essas demandas, embora válidas, não abarcavam todas as formas de ser mulher e refletiam a realidade de algumas poucas mulheres brancas, escolarizadas e de classe alta. Sendo assim, o feminismo negro nasce como uma forma de denuncia a opressão racial dentro do próprio movimento feminista, ao foca apenas nas diferenças sexuais como único marcado das desigualdades sociais. Nos anos de 1960 e 1970 as mulheres negras começaram a questionar o local que ocupavam na sociedade racista e capitalista e, nos anos posteriores, buscam ressignificar o ser mulher negra nessa mesma sociedade. Procurando acabar com os estereótipos e preconceitos que lhes eram atribuídos, sobretudo as imagens de que elas, as mulheres negras, eram a causa da falência de suas famílias (DÍAS-BENÍTEZ; MATTOS, 2019, p. 3). 

O patriarcado, para muitas pensadoras negras, não pode ser visto apenas pela relação de poder entre homens e mulheres, uma vez que qualquer definição ou conceitualização de opressão deve levar em consideração o fator racial, uma vez que o racismo estrutura as relações sociais (DÍAS-BENÍTEZ; MATTOS, 2019, p. 5). Cria-se no imaginário social, a partir de uma visão racista, a ideia de que mulheres negras “abandonam” seus filhos e são intrinsecamente “desorganizadas”. Segundo Días-Benítez e Mattos, esse pensamento é também fruto da liberdade conquistada pelas mulheres brancas. Isso porque ao saírem dos locais domésticos e irem para os espaços públicos não se lembraram das mulheres não-brancas, focando apenas nas suas demandas. Visto que para as mulheres brancas conseguirem sair de casa foi necessário que alguém ficasse no seu lugar cuidado da casa e dos filhos, quem ficou com essa responsabilidade foi a mulher negra e não-branca. Portanto, pode-se compreender que o fato das mulheres negras deixarem seus filhos sozinhos ou ficarem tempo demais trabalhando fora não é por uma característica da população negras, mas sim por conta de uma opressão por parte do próprio movimento feminista. Isso abre espaço para questionamentos que atravessam perspectivas de raça e classe dentro da luta feminista, o que destaca a importância de se pensar a partir da interseccionalidade.

Para que o feminismo seja de fato inclusivo, seria necessário “reestabelecer a solidariedade entre mulheres” (DÍAS-BENÍTEZ; MATTOS, 2019, p. 72) que parte da margem, abraçando as mulheres que ocupam esse lugar e partir para o todo. Sendo assim, seria importante entender que as articulações e fatores não podem ser vistos apenas como marcadores, mas características podem aumentar  privilégio ou desigualdade. Para elas, o gênero não pode ser analisado sem que outras variáveis estejam presentes na lente analítica. 

A partir dessa análise, podemos compreender que a fome deve ser analisada sobre uma lente interseccional, levando em consideração todas as características que promovem privilégios ou desigualdades. Quando um inquérito revela que lares chefiados por mulheres negras sofrem com a fome, temos que entender quais fatores influenciaram nesse resultado. Não apenas o gênero, mas sobretudo a raça e a classe influenciam nesse resultado. Mulheres negras foram e são excluídas de espaços, ocupando os piores cargos com os menores salários, passam a maior parte do tempo fora de casa e quando chegam ainda tem que cuidar da casa e dos filhos. Embora trabalhem muito, essas mulheres são as que mais sofrem com a fome.

A fome que o Brasil passa deve ser entendida como um fator estrutural porque ela não é causada e/ou intensificada por questões externas ou fora do controle estatal, mas fruto da desigualdade no acesso e na renda (AZEVEDO, 2022). Segundo a estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), em 2021 o país produziu aproximadamente 284,4 milhões de toneladas de safra, sendo os alimentos mais produzidos – soja, milho, trigo, cevada e arroz. Percebe-se ainda que esses alimentos não foram destinados à alimentação de pessoas, mas foram direcionados para produzir ração animal. Em 2020, 62% da safra de milho produzida foi transformada em ração animal e 60% da soja produzida foi exportada. A monocultura não é um processo novo no país, segundo Azevedo (2022), desde o período colonial temos uma produção de monocultura que privilegia a exportação em detrimento da alimentação da própria população, além disso, existe uma concentração de terra nas mãos de poucos indivíduos.

Como Josué de Castro já denunciava em sua obra “A geografia da fome” de 1946, a fome é um problema multifacetado, sendo um fator biológico e social, bem como político (BORTOLETTO, 2022 p. 25). Visto que houve um aumento significativo do preço dos alimentos in natura, ou seja, saudáveis e uma diminuição gritante dos preços sobre os alimentos ultraprocessados, alimentos que sofreram algum tipo de alteração pela indústria. Enquanto uma pequena população, branca, possui renda para ter acesso a produtos in natura, uma grande maioria da população, racializada, sofre com o nutricídio (LLAILA AFRIKA, 2013), conceito desenvolvido para chamar atenção para o genocídio que usa a alimentação como uma arma para promover a morte da população preta.
Desde a colonização, a população negra não tem acesso à terra e à alimentação. Como resultado dessas restrições históricas, percebemos a população passando por diversos problemas físicos e mentais por conta de diversos fatores, sendo um deles a alimentação. Azevedo (2022) argumenta que o capitalismo experienciado no Brasil é um capitalismo racista e colonial, responsável também pela estrutura do país que nega acesso e distribuição de terras e alimentos para a população não-branca.

O milagre dos ultraprocessados

Em abril de 2022, a inflação registrou alta de 2,06% no preço de alimentos e bebidas, aumento tal que influencia diretamente na vida das pessoas mais pobres, já que perdem seu poder de compra e, consequentemente, acesso a alimentos mais saudáveis. Os alimentos mais saudáveis e nutricionais (in natura) sofreram um aumento substancial enquanto produtos ultraprocessados tiveram uma queda dos preços, muitos deles passando a serem isentos de impostos federais. Dos 20 mantimentos que mais sofreram aumento no mês de abril de 2022, 19 eram in natura. Como revela o portal de notícias O Joio e o Trigo (2022) a cenoura sofreu um aumento de 150%, seguida da batata com 68%, legumes e raízes com 52,5%, tomate com 48,9% e o alface com 47,6% de aumento. Ingredientes como macarrão instantâneo, achocolatados e bebidas lácteas foram isentos de impostos federais com o argumento que compõem a cesta básica da população brasileira, além disso, alguns estados brasileiros adicionaram a salsicha como item de cesta básica (O JOIO E O TRIGO, 2022).

Segundo o Guia alimentar para a população brasileira (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014), o consumo de comidas ultraprocessadas está relacionado com doenças crônicas, doenças do coração e alguns tipos de câncer, além de obesidade e diabetes. O Guia ainda sustenta que tais alimentos devem ser evitados, uma vez que influenciam diretamente na saúde dos sujeitos. Todavia, como uma população que não tem acesso a renda pode comprar alimentos in natura ao invés de ultraprocessados? 

Com o aumento substancial dos preços dos alimentos saudáveis e a isenção de impostos sobre os ultraprocessados, os indivíduos mais pobres estão condicionados a comprar o mais barato – que, como vimos, muitas vezes também é o menos nutritivo – uma vez que eles precisam se alimentar até terem renda e comprarem de novo. 

Sabendo que existe uma população que não possui renda para comprar os produtos in natura, o Estado teria o dever de achar alternativas para suprir a necessidade da população. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ressurge então como uma ferramenta, que se bem executada, pode atenuar a insegurança alimentar e a fome no país, trazendo alimentos saudáveis e nutritivos para a população.

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE, 2022) revelou que no terceiro trimestre de 2022 havia 9,5 milhões de desempregados no Brasil, sendo assim, como evitar o consumo de alimentos ultraprocessados se esses são os únicos que a população mais pobre têm acesso? Se o mercado in natura está se tornando mais elitista, privilegiando quem possui renda para comprar produtos mais saudáveis e nutritivos, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) permite que pessoas sem poder de compra tenham acesso à alimentação saudável e mais barata, além de incentivar a agricultura familiar. Criado em julho de 2003 o Programa de Aquisição de Alimentos, mais conhecido como PAA, fez parte do Programa Fome Zero e tem o objetivo de atenuar a insegurança alimentar e nutricional, permitindo o acesso de pessoas com menor renda à alimentação, além de incentivar a agricultura familiar. O Programa foi retomado em 2023, a partir da Medida Provisória nº 1.166, de 22 de março (BRASIL, 2023). 

Financiado pelo Ministério da Cidadania, além da parceria com a CONAB, o PAA também produz um estoque público de alimentos, comprados de agricultores familiares, permitindo uma vinculo forte entre as produções locais e regionais, além da valorização da biodiversidade e alimentos orgânicos. Os estoques realizados pelo PAA também podem ser vistos como uma maneira de proteger os cidadãos e pequenos agricultores das variações climáticas que influenciam na agricultura.

Após quatro anos de (des)governo onde políticas públicas voltadas para atenuar a insegurança alimentar vinham sofrendo desmontes e cortes orçamentários, bem como a desestruturalização do Consea (O JOIO E O TRIGO, 2020), o Brasil retoma seus esforços para combater a fome no país. Em março de 2023, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva retornou com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) em uma cerimônia que ocorreu em Recife e tinha como objetivo afirmar a responsabilidade do atual governo de combater a fome ao mesmo tempo que valoriza e recompensa os pequenos produtores rurais. Mas não apenas isso, o novo Programa inclui povos indígenas e tradicionais, quilombolas, mulheres, negros e assentamentos de reforma agrária e jovens rurais (BRASIL, 2023).

A gestão e operacionalização do Programa fica a cargo do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Familiar e Combate à Fome (MDS), Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e pela CONAB. Além de contar com 5 modalidades de compra: “Compra com Doação Simultânea, PAA-Leite, Compra Direta, Compra Institucional e Apoio à Formação de Estoques” (SITE CONAB, 2023). 

As atividades terão início ainda em 2023, com um projeto de 309 pequenos agricultores pernambucanos, sendo as mulheres produtoras maioria, com uma aprovação de 77%  dos projetos aprovados. Com o investimento de R$ 2,68 milhões a expectativa é de conseguir 1 mil toneladas de alimentos. Além das atividades que já possuía, o PAA traz algumas atividades novas (SITE CONAB, 2023), são essas: 

  • Reajuste no valor individual (por agricultor fornecedor) de R$ 12 mil para R$ 15 mil, nas modalidades Doação Simultânea, Formação de Estoques e Compra Direta – sendo que o agricultor pode acessá-las simultaneamente e, ainda, por meio de organizações associativas das quais façam parte do quadro societário;
  • Facilitação do acesso para os agricultores familiares indígenas e demais povos e comunidades tradicionais;
  • Institui a participação mínima de 50% de mulheres na execução do PAA no conjunto de suas modalidades (antes era 40%);
  •  Criação do Comitê de Assessoramento do Programa, aumentando a participação da sociedade civil e de outros órgãos da administração – cujas políticas ou público beneficiário tenham convergência com o PAA – nas decisões estratégicas do Programa. A sociedade civil havia sido retirada da gestão do programa pelo governo anterior.

A retomada do PAA é uma forma não apenas de atenuar a fome, mas promover a segurança alimentar. Ao mesmo tempo que promove uma alimentação saudável e equilibrada, incentiva os pequenos agricultores familiares. Os alimentos adquiridos pelo Programa são destinados a pessoas que estão em situação de insegurança alimentar e nutricional, mas também para instituições e redes socioambientais públicas ou com teor filantrópico que visam a distribuição de alimentos (SITE CONAB, 2023). Além disso, vemos nessa nova configuração do PAA uma preocupação da participação de produtoras femininas no Programa como uma maneira de incentivar e permitir maior acesso dessas mulheres à renda, mas também ao acesso à alimentação.

Embora o Programa visa atender todos os sujeitos que estão em qualquer grau de insegurança alimentar, não existe ainda uma política destinada às mulheres negras e pobres, uma vez que estas são as que mais sofrem com a insegurança alimentar e nutricional no país, como dados que apontam 65% desses lares chefiados por essas mulheres estão com algum grau de insegurança alimentar e nutricional (II VIGISAN, 2022), portanto, o correto seria existir um foco maior para atenuar os problemas que esses lares passam, buscando atender os sujeitos de acordo com a situação de cada lar. Sendo assim, por mais que seja uma maneira de assegurar a segurança alimentar e nutricional da população e valorizar os pequenos agricultores, esse Programa não pode e nem deve trabalhar sozinho, políticas e programas que visem a segurança alimentar e nutricional devem ser criados e incentivados. 

Considerações Finais

Embora tenhamos na Constituição Federal o direito à alimentação, o Brasil passa por um contexto difícil (BRASIL, 1988). O Brasil voltou para o Mapa da Fome da ONU nove anos depois de ter saído dele. Atualmente 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil e 125,2 milhões de pessoas estão com algum grau de insegurança (II VIGISAN, 2022). Quando se analisa a interseção entre raça e gênero, percebemos que as mulheres negras que chefiam os lares são as que mais convivem com a fome. Segundo o 2º Inquérito realizado do PENSSAN em 2022, enquanto 46,4% dos homens estão em segurança alimentar, apenas 35,9% das estão em segurança alimentar. 53,2% dos lares chefiados por pessoas brancas estão em situação de segurança alimentar e apenas 35% dos lares chefiados por pessoas negras estão em situação de segurança alimentar. A fome, portanto, tem cor e gênero, sendo a face da mulher negra (II VIGISAN, 2022). 

Somado a esses fatores, percebe-se um aumento dos preços de alimentos in natura e uma diminuição crescente dos produtos ultraprocessados, muitos deles sendo isentos de impostos federais. Com pouca renda e com o preço dos alimentos cada vez mais altos os lares negros acabam por comprarem alimentos ultraprocessados para que não passem fome. A retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é uma maneira de enfrentar a insegurança alimentar e a fome que milhares de brasileiros passam atualmente, com projetos que visam produzir alimentos sem veneno, uma maior variedade alimentar da população e um incentivo aos produtores familiares. O PAA é um compromisso com a segurança e direitos dos sujeitos brasileiros, contudo, não pode ser visto como a única maneira de enfrentar a situação da fome no Brasil. Assim, programas, projetos e políticas de segurança alimentar devem trabalhar em conjunto com a PAA.

Para escrever este texto, foram utilizadas as seguintes referências:

II VIGISAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. II VIGISAN: relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.

FRIKA, Llaila. Nutritional Destruction of Black People: Nutricide. Pennsylvania: EWorld; 2013.  

AZEVEDO, Darana. C. DE. Vamos, sim, falar da fome!. Revista Katálysis, v. 25, n. 3, 2022, set. 2022. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/86213. Acesso em: 15 fev 2023.

BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm. Acesso em: 15 fev 2023.

BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.166, de 22 de março de 2023. Institui o Programa de Aquisição de Alimentos e altera a Lei nº 12.512, de 14 de outubro de 2011, e a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Brasília, 2033. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/mpv/mpv1166.htm. Acesso em: 24 abr 2023.  

BRASIL. [Constituição Federal (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em :https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 fev 2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed., 1. reimpr. – Brasília : Ministério da Saúde, 2014. 

CAMPOS, A; JAIME, P; CAMPELLO, T. Aos pobres, as salsichas. Opinião. NEXO. 6 maio 2022. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/Aos-pobres-as-salsichas. Acesso em: 15 fev 2023. 

COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO. Retomada do PAA visa fortalecer a agricultura familiar e a garantir o acesso à alimentação saudável a todos os brasileiros. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.conab.gov.br/ultimas-noticias/4947-retomada-do-paa-visa-fortalecer-a-agricultura-familiar-e-a-garantir-o-acesso-a-alimentacao-saudavel-a-todos-os-brasileiros. Acesso em: 09 abr 2023.

COSTA, Mariana. Política de impostos favorece ultraprocessados que o Ministério da Saúde manda evitar. Cultura Alimentar. O joio e o trigo. 10 ago 2022. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/08/politica-de-impostos-favorece-ultraprocessados-que-o-ministerio-da-saude-manda-evitar/. Acesso em: 15 fev 2023.

DA FOME À FOME: diálogos com Josué de Castro / organização: Tereza Campelo, Ana Paula Bortoletto. São Paulo: Cátedra Josué de Castro; Zabelê Comunicação; Editora Elefante, 2022. Disponível em: https://geografiadafome.fsp.usp.br/da-fome-a-fome-dialogos-com-josue-de-castro/. Acesso em: 15 fev 2023.

DESEMPREGO bate recorde no Brasil em 2020 e atinge 13,4 milhões de pessoas. Economia – UOL. São Paulo, 26 fev 2021. Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2021/02/26/desemprego—pnad-continua—dezembro-2020.htm. Acesso em: 15 fev 2023.

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; MATTOS, AMANA. Metodologia e relações internacionais: debates contemporâneos: vol. II / Isabel Rocha de Siqueira … [et al.] (organizadores). – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2019.

GUEDES, Aline. Retorno do Brasil ao Mapa da Fome da ONU preocupa senadores e estudiosos. Agência Senado. 14 out 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/10/retorno-do-brasil-ao-mapa-da-fome-da-onu-preocupa-senadores-e-estudiosos. Acesso em: 15 fev 2023.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Estudo Técnico No. 01/2014 Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA: análise psicométrica de uma dimensão da Segurança Alimentar e Nutricional. Disponível em: https://fpabramo.org.br/acervosocial/wp-content/uploads/sites/7/2017/08/328.pdf. Acesso em: 16 mar 2023.

PERES, João. Arquitetura da destruição das políticas de combate à fome no Brasil. Cultura Alimentar. O joio e o trigo. 3 fev. 2023. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2020/02/arquitetura-da-destruicao-das-politicas-de-combate-a-fome-no-brasil/. Acesso em: 09 abr 2023.

RIBEIRO, Edda. Nutricídio, mas também pode chamar de fome. O joio e o trigo. 5 nov 2020. Brasil. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2020/11/nutricidio-mas-tambem-pode-chamar-de-fome/. Acesso em: 15 fev 2023.

Lucas Marcelo

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