Para citar esse texto:
SOARES, Giovanna. A LUTA PELA DISCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NA AMÉRICA LATINA E CARIBE: UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA SOCIAL E SAÚDE PÚBLICA. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 28 set 2021. Disponível em: https://decoloniais.com/a-luta-pela-discriminalizacao-do-aborto-na-america-latina-e-caribe-uma-questao-de-justica-social-e-saude-publica/ Acesso em: *inserir data*
Introdução
Para articular a luta dos países da América Latina e do Caribe pelos direitos reprodutivos e sexuais, em especial a descriminalização do aborto, instituiu-se o dia 28 de setembro como o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto, a partir da Declaração de San Bernardo. A data foi pensanda no V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, no ano de 1990, na cidade argentina de San Bernardo, no qual, mulheres feministas vindas de diversos países discutiram sobre as consequências da criminalização do aborto para mulheres latino-americanas, principalmente os altos índices de mortalidade materna no continente (ARAS; GONZAGA, 2015; ALCARAZ, 2019).
A data foi uma sugestão das representantes brasileiras, pois coincidia com o dia em que em 1871 fora promulgada no Brasil a “Lei da Liberdade dos Ventres”: a norma que considerava livres todos os filhos e filhas de escravas nascidos a partir da promulgação da lei. A Declaração de San Bernardo incentivou a criação de comissões pelo Direito ao Aborto em cada país latino-americano e apoiou as já existentes (ALCARAZ, 2019). Nesse sentido, tendo em vista essa data, o presente texto tem como objetivo analisar os direitos reprodutivos e sexuais na região. Como a questão do aborto está sendo tratada na América Latina depois de 31 anos da institucionalização desse dia? Por que o aborto é uma questão de saúde pública e deve ser considerado um direito da mulher?
A questão do aborto na América Latina
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 95% de todos os abortos praticados em situação de risco acontecem em países em desenvolvimento que mantêm leis restritivas contra o aborto. A proibição de abortar não faz com que essas intervenções diminuam, mas leva as mulheres a recorrerem a métodos clandestinos e, muitas vezes, inseguros. De acordo com a OMS, a cada ano, mais de quatro milhões de mulheres se submetem a abortos clandestinos na América Latina e, de acordo com um estudo publicado no International Journal of Obstetrics & Gynaecology, pelo menos 10% das mortes maternas na América Latina e no Caribe se devem a abortos inseguros. Além disso, a cada ano, 760.000 mulheres na região recebem tratamento por complicações derivadas de intervenções clandestinas (FONTES, 2021). Como bem ressalta Chiparrone:
nos cenários mais restritivos, o aborto passa a ser um recurso para as mulheres com maior poder econômico, que têm as melhores chances de superar os impedimentos legais; enquanto as mulheres pobres vão colocar suas vidas em risco como consequência da interrupção de uma gravidez indesejada. Ou, como é o caso em nossa região da ALC, elas também colocam em jogo sua própria liberdade pessoal como resultado da criminalização absoluta do aborto que se traduz em sentenças judiciais que impõem penas de longo prazo (CHIPARRONE, 2018, p.201, tradução nossa1).
Dessa forma, argumenta-se pela importância de tratar o aborto como uma questão de saúde pública, mas a tarefa de falar sobre essa temática nem sempre é fácil, pois reascende debates éticos, filosóficos, morais e religiosos. De acordo com Marta Lamas:
é importante lembrar que ninguém é “a favor” do aborto: todos nós desejamos que nenhuma mulher realize um aborto. Mas sim, alguém pode ser “a favor” de uma melhor gestão dos abortos realizados, que elimine os problemas de justiça social e de saúde pública, e favoreça uma educação que previna a repetição desse comportamento (LAMAS, 2008, p.90, tradução nossa2).
No entanto, como já visto, a prática clandestina do procedimento, que já é antiga, representa diversos riscos à saúde das mulheres, sendo um dos principais catalisadores das mortes maternas em todo o mundo. Nesse contexto, a possibilidade de ter informação e recursos para a interrupção voluntária da gravidez está diretamente ligada a melhores índices de saúde, enquanto o avanço de governos conservadores e da maior influência política de movimentos fundamentalistas, como acontece em certos países da América Latina e Caribe, geram maior vulneração de direitos, maior taxa de mortalidade por abortos inseguros e de partos forçados (FONTES, 2021). Além disso, segundo Lamas (2008, p. 89),
além de ser apenas uma questão de saúde pública e justiça social, o acesso a uma interrupção segura é um problema democrático: no direito de decidir, se encontram presentes os princípios políticos de uma democracia pluralista moderna e a não satisfação da reivindicação para descriminalizar o aborto não só causa morte e sofrimento; também alimenta o desencanto de milhões de mulheres latino-americanas com os processos democráticos em seus países (LAMAS, 2008, p.89, tradução nossa3).
A temática solidificou-se como pauta internacional dos Direitos Humanos e, atualmente, a descriminalização do aborto é uma sugestão a todos os países que ainda mantêm a prática criminalizada, ou seja, considerada um crime com consequências punitivas segundo a lei. Na América Latina,
as feministas propuseram a interrupção de uma gravidez indesejada de várias perspectivas: como uma questão de justiça social, como uma questão de saúde pública e como uma aspiração democrática. Apesar da contundência de seus argumentos, foram ignoradas por seus governos e até as acusaram de retomar a uma demanda do primeiro mundo, alheia à realidade latino-americana (LAMAS, 2008, p.66, tradução nossa4)
Mesmo com o êxito obtido em grande parte da Europa, o avanço dessa discussão foi contido nos países latino-americanos devido a predominância dos governos ditatoriais conservadores nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, que dificultaram a organização dos movimentos políticos e sociais, inclusive o movimento feminista e suas pautas de liberação do corpo e da sexualidade feminina. Com a redemocratização, as mulheres latino-americanas e o movimento feminista, que têm protagonizado as principais batalhas pela conquista dos direitos sexuais e reprodutivos em seus países e com trajetórias marcadas por resistência, colocaram em pauta novamente a questão do aborto, rompendo com uma estrutura secularmente colonialista, racista, misógina e homofóbica (ARAS; GONZAGA, 2015), uma vez que
as mulheres latino-americanas são historicamente afetadas por múltiplas estruturas de opressão, considerando racismo, o processo de colonização territorial e cognitivo e a exploração histórica das riquezas nacionais por países colonizadores, que operam concomitantemente, mas de formas distintas (ARAS; GONZAGA, 2015, p.3).
No entanto, mesmo com todo esse esforço, novos arranjos políticos e disputas de poder contribuíram para que o aborto continuasse sendo considerado crime na maior parte da região (ARAS; GONZAGA, 2015). A América Latina e o Caribe estão entre as regiões com legislações mais duras em relação ao aborto, juntamente com a África e o Oriente Médio. Na região, 97% das mulheres vivem sob regras que proíbem ou restringem sensivelmente o procedimento, impedindo a liberdade de escolha (SCHREIBER, 2018). Além disso, mesmo nos casos específicos previstos em lei, uma série de restrições dificulta o acesso das mulheres ao direito à interrupção da gravidez nos países latino-americanos (SAHUQUILLO, 2018). Segundo Norma Graciela Chiapparrone (2018), o avanço ultraconservador com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres pode ser explicado em grande medida pela força determinante dos grupos evangélicos, de grande presença na América Latina.
Nesse contexto, para visualizarmos e entendermos melhor o panorama atual da legislação sobre aborto nos países da América Latina, segue uma tabela explicativa:
Status aborto | Países da América Latina e Caribe |
Amplamente permitido | Argentina, Cuba, Guiana, Guiana Francesa, México, Porto Rico e Uruguai. |
Permitido em casos específicos | Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. |
Totalmente proibido | El Salvador, Haiti, Honduras, Jamaica, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. |
Tabela 01: Status legal do aborto em países da América Latina.
Fonte: Fontes (2021)
Cabe destacar aqui que, na Conferência Internacional de Monitoramento dos Objetivos do Milênio (2010), “a ocorrência de abortos inseguros foi apontada como a terceira causa dos elevados índices de mortalidade materna, sendo uma sugestão de que os países latinoamericanos e caribenhos revejam as legislações punitivas sobre a prática” (ARAS; GONZAGA, 2015, p.12). Nos países da Europa Ocidental, as taxas de aborto e mortalidade materna são muito mais baixas onde o aborto é permitido (CHIPARRONE, 2018).
Considerações Finais
Nesse sentido, após 31 anos após a institucionalização dessa data, é possível perceber que a questão dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, enquanto pressupostos à plena democracia e à cidadania, encontra ainda importantes limitações na América Latina e no Caribe, onde o direito a um aborto legal e seguro ainda é vedado à quase totalidade de mulheres da região.
Os dados aqui expostos refletem a magnitude do problema e mostram que a questão deve ser tratada como um grave problema de saúde pública. Ademais, apesar da proibição total ou parcial do aborto nas legislações da maioria dos países latino-americanos, as pessoas com capacidade de carregar filho continuam recorrendo a essa prática. O aborto deve ser tratado com um direito porque trata-se de uma questão de exercício de autonomia e de liberdade sobre o corpo feminino e os Estados devem garantir e respeitar os direitos reprodutivos das mulheres.
Além disso, como já exposto, a parcela da população feminina que mais sofre com a criminalização do aborto é a que tem menor condição financeira e encontramos, nas situações de aborto entre mulheres negras, experiências edificadas pela violência racial e de gênero (FONTES, 2021). Segundo Chiapparrone (2018, p. 192), “essas situações as impactam de forma diferenciada dependendo da raça, etnia, religião, escolaridade, nível de renda, entre outros motivos” (tradução nossa5). Segundo Marta Lamas (2008, p.70),
Além de ser um problema de saúde pública, na América Latina o aborto é um problema de justiça social, porque mulheres com recursos abortam com segurança no consultório do ginecologista, enquanto outras colocam em risco a saúde e a vida. São justamente as mulheres indígenas, camponesas e trabalhadoras pobres que morrem, são prejudicadas ou vão para a cadeia por abortos ilegais (LAMAS, 2008, p. 70, tradução nossa6).
Além disso, é preciso lembrar que, atrás dos números, existem histórias. Histórias de mulheres e pessoas com capacidade de gestar que poderiam ter outro futuro caso vivessem em países que tivessem uma lei de aborto legal, seguro e gratuito. Ou seja, todas essas mortes eram evitáveis e expressam que a falta de leis de aborto seguro se traduz em violência sexista, mas também em violência institucional.
Assim sendo, a luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe deve ser lembrada não apenas no dia 28 de setembro, mas durante todo o ano. Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres são um tema importante para as políticas nacionais e internacionais e deve ser discutido nas formulações de agendas regionais e internacionais para se alcançar um mundo mais justo para todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar.
Como escreve Alcaraz (2019), a negação desse direito é um ato de violência contra os corpos com capacidade de gestar. Os projetos de vida, a reprodução e a sexualidade devem ser exercidos a partir da autonomia e da liberdade. Uma lei que descriminaliza e legaliza o aborto implica caminhar para uma lei que amplia projetos de vida e possibilidades: que permite dizer não a uma gravidez naquele momento para dizer sim a uma lista infinita de modos de vida e desejos.
Referências
ALCARAZ, María Florencia. ¡Que sea ley!: La lucha de los feminismos por el aborto legal. Marea Editorial. Edição do Kindle.
ARAGÃO, Nikolly Sanches. A Descriminalização do Aborto no Brasil. Âmbito Jurídico, 17 de outubro de 2019. Disponível em: < https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/a-descriminalizacao-do-aborto-no-brasil/ > Acesso em: 21 de setembro de 2021.
CHIAPPARRONE, Norma Graciela. El derecho al aborto en América Latina y el Caribe. Atlánticas–Revista Internacional de Estudios Feministas, v. 3, n. 1, p. 192-223, 2018.
FONTES, Giovanna Soares. Argentina e Brasil: A questão do aborto e os direitos reprodutivos das mulheres. OFRI, 12 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://ofri.com.br/argentina-e-brasil-a-questao-do-aborto-e-os-direitos-reprodutivos-das-mulheres/ > Acesso em: 21 de setembro de 2021.
FONTES, Giovanna Soares. Es ley: o caso da legalização do aborto na Argentina. Rio de Janeiro, 2020. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais e Defesa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
GONZAGA, Paula R.; ARAS, Lina. Mulheres Latino-Americanas e a Luta por Direitos Reprodutivos: o panorama da conjuntura política e legal do aborto nos países da América Latina. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 9, n. 2, 2015.
LAMAS, Marta. El aborto en la agenda del desarrollo en América Latina. Perfiles latinoamericanos, v. 16, n. 31, p. 65-93, 2008.
SAHUQUILLO, María R. Aborto é prática ilegal para 90% das mulheres na América Latina. El País, 20 de junho de 2018. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/14/internacional/1529002780_075313.html > Acesso em: 21 de setembro de 2021.
SCHREIBER, Mariana. Senado argentino barra legalização do aborto; países latino-americanos são os que mais restringem prática no mundo. BBC News Brasil, Brasília, 09 de agosto de 2018. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/geral-45126092 > Acesso em: 21 de setembro de 2021.
Notas
Tradução de: “en los escenarios más restrictivos, el aborto se convierte en un recurso para las mujeres con mayor poder económico, que son quienes tienen más posibilidades de sortear los impedimentos legales; en tanto que las mujeres pobres van a poner en riesgo sus vidas como consecuencia de la interrupción de embarazos no deseados. O bien, como sucede en nuestra región de LAC, también ponen en juego su propia libertad personal a raíz de la penalización absoluta del aborto que se traduce en sentencias judiciales que les imponen penas de larga duración.”
Tradução de: “es importante recordar que nadie está “a favor” del aborto: todas las personas deseamos que ya nunca ninguna mujer se realice un aborto. Pero sí se puede estar “a favor” de un mejor manejo de los abortos realizados, que elimine los problemas de justicia social y salud pública, y favorezca una educación que prevenga la repetición de esa conducta.”
Tradução de: “más allá de ser meramente una cuestión de salud pública y de justicia social, el acceso a una interrupción segura es un problema democrático: en el derecho a decidir se encuentran vivos los principios políticos de una democracia moderna pluralista y la no satisfacción de la reivindicación de despenalizar el aborto no sólo causa muertes y sufrimientos; también nutre el desencanto de millones de latinoamericanas con los procesos democráticos en sus países.”
Tradução de: “las feministas han planteado la interrupción de un embarazo no deseado desde diversas perspectivas: como un asunto de justicia social, como una cuestión de salud pública y como una aspiración democrática. No obstante la contundencia de sus argumentaciones, han sido ignoradas por sus gobiernos e incluso las han acusado de retomar una exigencia del primer mundo, ajena a la realidad latinoamericana.”
Tradução de: “estas situaciones las impactan diferencialmente dependiendo de la raza, etnia, religión, educación, nivel de ingresos, entre otras razones”
Tradução de: además de ser un asunto de salud pública, en América Latina el aborto es un problema de justicia social, porque las mujeres con recursos abortan sin peligro en los consultorios de sus ginecólogos, mientras las demás arriesgan su salud y sus vidas. Son justamente las indígenas, campesinas y trabajadoras pobres quienes mueren, quedan dañadas o van a la cárcel por los abortos ilegales.