Para citar esse texto:
EL CHEIKH, B. A FERIDA COLONIAL FRANCESA NO LÍBANO. Debates Pós Coloniais e Decoloniais, 19 out 2020. Disponível em: https://decoloniais.com/a-ferida-colonial-francesa-no-libano/ Acesso em: *inserir data*
A explosão que devastou Beirute em 4 de agosto de 2020 agravou a já turbulenta situação econômica e política do Líbano. Desde outubro de 2019, manifestações contra o atual governo tomaram as ruas do país, reivindicando o fim da corrupção, da negligência e de outras mazelas causadas pelo neoliberalismo libanês. Quando a causa da detonação foi revelada, os protestos, que haviam cessado por conta da pandemia do Coronavírus, foram retomados com ainda mais potência, reivindicando justiça pelas mais de 200 vítimas fatais, milhares de feridos e mais de 300 mil desabrigados. O conhecimento de que a tragédia poderia ter sido evitada, não fosse o descaso das autoridades e a falta de supervisão sobre o precário armazenamento de nitrato de amônio no porto, incitou a revolta entre seus habitantes.
O último período de longa estabilidade política, econômica e social no Líbano remonta aos anos anteriores à Guerra Civil de 1975. Além dos problemas internos, os ataques de Israel, como a invasão de 1982 e a guerra de 2006, aprisionam o Líbano num estado constante de tensão. Atualmente, a epidemia do Coronavírus, os incêndios florestais ao longo de sua extensão territorial e a destruição do porto somam-se à crise bancária e governamental.
Nesta conturbada conjuntura, o presidente francês Emmanuel Macron encontrou uma brecha para recuperar a influência francesa com apoio de parte da população. Macron, como inúmeros de seus predecessores, segue a tradição colonial de manter relações próximas com o governo libanês, costume colocado em prática momentos após a explosão. Em sua conta oficial no Twitter, expressou em árabe e em francês sua “solidariedade fraterna aos libaneses após a explosão que deixou muitas vítimas e causou grande estrago em Beirute. A França está sempre ao lado do Líbano.” De fato, a França sempre esteve ligada à ex-colônia, mas não por outro motivo além do interesse político e econômico. Dentro do imaginário colonial francês, o Líbano representa um território para projeções de poder e fantasias orientalistas que remontam ao ápice do Império Francês e sua defasada notoriedade. Esse movimento neocolonial no Líbano não é o único orquestrado pela França em suas ex-colônias, como pode ser observado no Mali.
Além do rápido apoio prestado nas redes sociais, Macron foi o primeiro líder internacional a visitar Beirute após o acontecido. No dia seguinte à explosão, esteve na capital, onde se reuniu com líderes do governo após inspecionar a devastação do porto. A ajuda proposta por Macron foi condicionada a alterações no sistema político local, remetendo ao período de jurisdição francesa no Líbano. Na coletiva de imprensa do dia 6 de agosto, o presidente afirmou:
“Nós nos mobilizamos. O financiamento está aí. Eles estão esperando pelas reformas. A agenda de Paris, as conferências do Cèdre, as reformas econômicas e o apoio da comunidade internacional estão apenas esperando por esse passo. Além disso, diante da raiva e a desconfiança, a esperança que nutro e o apelo que pude dirigir esta manhã ao Presidente Aoun, ao Presidente do Parlamento Nabih Berri, ao Primeiro-Ministro Hassan Diab e a todos os representantes das forças políticas.
(…)
Os dirigentes e as forças políticas libanesas têm hoje uma demonstração a fazer, a da sua capacidade de resposta.”
Nous nous sommes mobilisés. Les financements sont là. Ils attendent les réformes. L’agenda de Paris, les conférences CÈDRE, les réformes économiques et le soutien de la communauté internationale n’attendent que ce sursaut. Aussi, face à la colère et la défiance, l’espoir que je nourris et l’appel que j’ai pu faire ce matin au Président AOUN, au président du Parlement Nabih BERRI, au Premier ministre Hassan DIAB et à l’ensemble des représentants des forces politiques.
(…)
Les dirigeants, les forces politiques libanaises ont aujourd’hui une démonstration à faire, celle de leur capacité à y répondre. “
Apesar de reafirmar a soberania libanesa em seu discurso, o presidente francês não só sugeriu Mustapha Adib para o cargo de novo Primeiro-Ministro, como buscou apoio dos partidos políticos para sua nomeação. No entanto, mesmo com os esforços do chefe de Estado francês, Adib renunciou ao cargo após 25 dias. Menos de um mês depois, Macron retornou ao Líbano com uma retórica ainda mais impositiva, insatisfeito com a saída de Adib e questionando o papel do Hezbollah na política libanesa. Segundo o francês, o grupo liderado por Hassan Nasrallah “não pode estar em constante conflito com Israel e ser um grupo respeitado no Líbano”. As críticas de Macron seriam mais pertinentes se o grupo político tivesse se oposto às suas reformas, mas em respeito aos clamores de grande parte da população, o Hezbollah acatou todas as mudanças sugeridas pela França.
Antes de retornar à Paris, Emmanuel Macron atendeu à cerimônia em homenagem aos 100 anos do estabelecimento francês do “Grande Líbano”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial e a consequente queda do Império Otomano, o domínio local foi oficialmente transferido para República Francesa através do Tratado de Sèvres em 1920. Na verdade, em 1915, França e Reino Unido já haviam partilhado entre si suas esferas de interesse no Oriente Médio, prevendo a potencial queda dos otomanos no acordo secreto de Sykes-Picot, formalizado no ano seguinte. O episódio celebrado por Macron em 1 de setembro de 2020, marca a data em que o general Henri Gouraud, general do alto comissariado francês na região, proclamou o estabelecimento do Grande Líbano, correspondente à geografia atual do país. A declaração feita por Gouraud ocorreu na Residência do Pinho, em Beirute, onde hoje é a residência oficial do embaixador francês no Líbano. No palácio, Macron participou da cerimônia ao lado do presidente libanês, Michel Aoun, e outros líderes governamentais, dentre eles, representantes do Hezbollah. Para marcar o centenário do Líbano colonial, Macron plantou um cedro, enquanto jatos franceses pintavam o céu de Beirute com as cores da bandeira do Líbano.
Como gerente imperialista, Macron ignora o período que precede a colonização francesa. Em seus mais de 7 mil anos de história registrada, a região em que hoje se encontra o Líbano, foi o berço da civilização fenícia, sendo posteriormente povoada por assírios, persas, gregos, bizantinos e turco-otomanos. A grande quantidade de povos que habitou o local contribuiu para sua diversidade cultural, étnica e religiosa. O domínio francês data apenas da década de 1920, mas, embora seu mandato tenha terminado efetivamente em 1946, quando suas tropas deixaram o território, o Líbano segue sob sua influência. As divisões sectárias do governo libanês, por exemplo, remontam às imposições do colonialismo francês.
O Líbano é adepto do confessionalismo, sistema que busca impedir a concentração de poder através da distribuição de cargos políticos entre os cristãos (maronitas, católicos, ortodoxos e uma minoria evangélica), muçulmanos (xiitas, sunitas, alauitas) e drusos. Em 1943, o Pacto Nacional determinou que o presidente deveria ser cristão, o primeiro-ministro sunita e a voz do Parlamento xiita, modelo este que precisou de reestruturação após a Guerra Civil (1975 – 1990). Em 1989, o Acordo de Taif foi assinado pelas partes envolvidas, estabelecendo uma divisão mais igualitária entre cristãos, muçulmanos e drusos no Parlamento.
Durante o período do Mandato Francês, a parcela cristã da população era favorecida em detrimento das outras religiões. Tais benefícios perduram até os dias atuais, pois de acordo com o sistema confessionalista, a representação no poder legislativo deve ser proporcional à parcela populacional de cada grupo religioso. No entanto, é importante notar que o Líbano não possui um censo oficial desde 1932, e que as estimativas demográficas apontam para um crescimento exponencial da população muçulmana, que teria superado a cristã. Se esta for de fato a realidade no país, o maior secto estaria sub-representado há décadas, enquanto uma minoria detém maior influência política.
A relação entre a França e os libaneses cristãos é muito fortalecida no âmbito político e cultural, reportando ao período do Mandato Francês e até mesmo à época das Cruzadas. Quando comparada aos vizinhos, a região apresenta certa resistência histórica ao islã. Para a população cristã, os muçulmanos afastariam o Líbano de um ideal francês de sua sociedade. Dentre os cristãos, maronitas são os mais alinhados a Paris. O próprio presidente Michel Aoun fundou seu partido “Movimento Patriótico Livre” na capital francesa, de onde sempre recebeu muito apoio.
No espectro muçulmano do sistema político libanês, um dos partidos mais expressivos é o Hezbollah. Considerado por países alinhados aos Estados Unidos, Arábia Saudita e Israel como terrorista, é o único grupo capaz de defender o território libanês contra as ameaças israelenses, pela sua capacidade militar superior às próprias forças armadas do país. Apesar dos recentes ataques de Macron, a França mantém relacionamento com o partido liderado por Hassan Nasrallah. O Hezbollah possui um histórico de sucesso em conflitos contra Israel, tendo impedido a invasão de suas tropas em 2006. A despeito disso, as divergências religiosas fazem com que alguns cristãos deem preferência a acordos que ameacem sua própria soberania, a aceitar a presença legítima do Hezbollah no governo.
Do ponto de vista decolonial, o atual cenário libanês revela dois grandes obstáculos. O primeiro é expresso na imagem de um governo enfraquecido pela corrupção, o que facilita a intervenção externa. A crise política debilita a economia e dificulta o longo caminho para reestruturação do país. Com tantos agentes externos interessados no Líbano, além da França, esse período de instabilidade torna-se ainda mais delicado. A incapacidade de gestão libanesa é transformada em descontentamento enquanto a confiança popular é transferida para a figura de Macron. O presidente francês instrumentaliza os laços coloniais entre ambos os países para fortalecer sua influência na região.
O segundo empecilho no caminho da decolonização tem correlação direta com o primeiro. Como em muitas ex-colônias, a independência libanesa não garantiu ao seu povo a verdadeira liberdade. Os resquícios coloniais não se encontram apenas nas esferas política e econômica, mas também na mentalidade de seus nativos. Muitos libaneses permanecem com o que Nelson Maldonado-Torres denomina de “formas de pensamento que promovem a colonização e autocolonização” (Maldonado-Torres, 2018). No dia seguinte à tragédia no porto de Beirute, por exemplo, foi criada uma petição na plataforma Avaaz solicitando a supervisão de Macron na transição de poder do país. Mais de 55 mil pessoas assinaram o termo, alegando que “o Líbano deve voltar ao Mandato Francês a fim de estabelecer um governo limpo e durável”. Perdida na contradição neocolonial, a população clama pela “libertação” do sistema político atual através de uma milagrosa intervenção externa, que, na prática, não tem obtido os resultados esperados: as mudanças propostas por Macron não fogem ao modelo em voga e suas indicações não escapam das elites tradicionais libanesas.
A França de Emmanuel Macron não possui a solução para o Líbano. O histórico de dominação estrangeira na região deveria provocar na população libanesa uma aversão a qualquer imposição neocolonial. A pluralidade étnica e religiosa do Líbano não é o que desestabiliza o país – é justamente no reconhecimento de suas divergências que está a possibilidade de seu fortalecimento. Retomando Maldonado-Torres, a superação da ordem moderna/colonial é condicionada a um projeto coletivo. Somente através dessa condição, a ferida colonial no Líbano começará a cicatrizar.
Referências
MALDONADO-TORRES, N. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: Bernadino-Costa, J. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Grupo Autêntica, 2018.