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A ‘DEVOLUÇÃO’ DE OBRAS DE ARTE PARA ÁFRICA: A TENTATIVA DE APAGAMENTO DO PASSADO COLONIAL EUROPEU

Nos últimos meses, temos observado alguns países europeus se dedicando a retornar obras de artes originárias de ex-colônias que estavam sob a tutela de seus museus. Esse tema também vem sendo abordado no debate público e até nas telas de cinema como, por exemplo, no filme Pantera Negra. Assim, os itens em disputa são artefatos físicos de um grupo ou sociedade que foram retirados geralmente em um ato de pilhagem (saque) no contexto do imperialismo, colonialismo e/ou guerra. Os objetos contestados variam amplamente e incluem esculturas, pinturas, monumentos, restos humanos e objetos como ferramentas ou armas para fins de estudo antropológico.

No contexto colonial, o saque era uma ferramenta econômica, mas também uma forma do poder colonial afirmar seu domínio sobre o povo colonizado, apagando a identidade cultural e incutindo um sentimento de inferioridade entre os subjugados. Recusando a narrativa de benevolência e que vem sendo fabricada pelo discurso europeu, o Debates propõe uma reflexão sobre tais práticas a partir de um olhar decolonial e pós-colonial. Como começou a prática de devolução de artefatos culturais? De quais países partiu o interesse no debate? Como a repatriação desses objetos tensiona o passado/presente colonial da Europa?

Desde o século XVII, tratados internacionais entre países europeus, como o Tratado de Vestfália (marco do mito de origem da soberania estatal moderna), já continham preocupações sobre espólios de guerra, ainda que pouco institucionalizadas (SERRANO, 2017). Outro exemplo dentro da Europa é a política de conservação de obras de arte adquiridas durante a expansão napoleônica, no entanto, a valorização de objetos artísticos ainda era circunscrita à Europa e, abaixo da linha do Equador, tudo era permitido dentro do regime legal, inclusive saques e roubos, uma vez que os povos não europeus não eram considerados iguais aos europeus.

Dessa forma, a Segunda Guerra Mundial é o que institui uma virada no debate. Mesmo que práticas violentas fossem cotidianas nas colônias, foi preciso que os europeus sentissem na própria pele a sua identidade (mais, principalmente, a sua propriedade) ser roubada e morta física e simbolicamente para começarem a se preocupar com possíveis consequências de suas ações do passado. Sobre essa relação “indefensável” da Europa com a colonialidade, o poeta martinicano Aimé Césaire (1978, p. 18) resume: 

 [O] que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros de África estavam subordinados.

A busca pela restituição de artefatos retirados de ex-colônias é uma demanda antiga que avança lentamente desde o século XX.  Mais recentemente, em 2007, a ONU instaurou em sua Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o artigo 11, que incumbe aos Estados a restauração da “propriedade cultural, intelectual, religiosa e espiritual” tirada dos povos indígenas sem seu “consentimento livre, prévio e informado ou em violação de suas leis, tradições e costumes”. Com esse respaldo das Nações Unidas, alguns países como Egito e Nigéria começaram a requisitar alguns de seus artefatos históricos que estavam em museus europeus. Os esforços de países afetados pelo colonialismo também incluíam a criação de grupos que buscavam uma comunicação mais eficaz entre seus representantes e curadores de museus europeus. Porém, o interesse das ex-metrópoles em engajar nesse processo só aumentou efetivamente após 2018, quando o presidente francês Emmanuel Macron resolveu investir na restituição e repatriação de objetos culturais retirados das ex-colônias francesas. Outros países europeus, que antes mostravam-se menos empenhados, incluíram em sua narrativa a necessidade de “confrontar o passado”. 

O que queremos argumentar, é que mesmo que realmente essas instituições governamentais agora busquem ‘devolver’ os artefatos, isso em nenhum momento os coloca no “lado certo” da história. Para Ann Stoler (2011), emprestada da psicologia clínica, a afasia colonial é usada para descrever as dificuldades enfrentadas pelas esferas acadêmicas e políticas europeias em articular as questões que cercam os seus passados e presentes (neo)coloniais, em que relações de esquecimento/memória operam simultaneamente. Nesse sentido, o que vemos nessas iniciativas de restituição são, na verdade, dificuldades dentro da narrativa europeia de confrontar seu passado e a tentativa de problematizar sua agência no presente.

Nessa discussão ainda esbarramos em debates linguísticos: como, por exemplo, devemos denominar esses objetos? A linguagem é importante na formulação do discurso, uma vez que ela permite desviar a atenção para a origem desses itens. A ideia de que um objeto cultural seja apenas um “presente recebido dos nativos” ou algo comprado mascara a violência colonial dessas práticas e retira a responsabilidade dos museus, uma vez que é preciso verificar se uma obra recebida é de origem ilegal antes de expô-la. 

Outra questão de linguagem, apontada por Jos van Beurden (2016), está relacionada ao verbo utilizado na ‘devolução’. De fato, há várias opções – como retornar, transferir, devolver, restituir, reparar e reconciliar, por exemplo – e cada uma delas detém cargas positivas ou negativas. Países como França, Holanda e Alemanha procuram escolher um verbo que não os coloque na posição de perpetradores de violências, que, por sua vez, pode levar a debates sobre reparações para além das ‘devoluções’, como obrigações legais.

Menezes e Álvarez (2019) afirmam que o enquadramento adotado por acadêmicos advém da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), sendo utilizados os termos “restituição” e “retorno” para, respectivamente, se referir a obras adquiridas em “roubos”, ou seja, uma reivindicação de restituição, e “ilegalmente exportados”, configurando um pedido de retorno. Já a mídia e o debate público utilizam o termo “restituição”, que é rejeitado por alguns museólogos e comerciantes de artes por enfatizar uma linha de pensamento “tendenciosa, porque envolve a presunção de furto/roubo” (MENEZES; ÁLVAREZ, 2019, p. 176). 

Antes de avançarmos para os exemplos, achamos importante abordar as questões econômicas por trás desse movimento e como elas permitem a preservação das relações metrópole/colônia. Como apontam Menezes e Álvarez (2019, p. 171), o Ministério da Cultura francês reconhece 1300 locais de exposição de arte, sendo o Museu do Louvre o local mais visitado do mundo. Assim, obras adquiridas nos mais diversos contextos da história da França contribuíram com 2.4 milhões de euros só em 2016. Isso nos mostra como, se ‘devolvidas’, estas obras poderiam estimular o turismo cultural e o mercado de arte em países africanos. Os autores, inclusive, apontam para uma ampliação de restrições concretas para o mercado ilegal das obras de arte em direção aos países do Norte Global.

Mas por que não há uma maior ‘agilização’ para retornar essas obras para onde elas deveriam estar? O regime legal internacional vigente é mais uma soft law (ou regras não juridicamente obrigatórias), dependente principalmente de acordos bi e multilaterais, que não resolvem o problema. Pelo contrário, reiteram o lugar do europeu como único capaz de garantir a segurança e logística adequadas para cuidar de objetos culturais de outros povos, sendo estes últimos incapazes de oferecer o mesmo. Novamente, as regras são determinadas pelas (ex-)metrópoles, e as (ex-)colônias pagam o preço, inferiorizadas pelo patamar europeu de ‘excelência’. Considerando os pontos supramencionados, destacamos alguns dos países europeus envolvidos nos processos de restituição:

Como mencionado anteriormente, em 2018, o presidente francês Emmanuel Macron encomendou um relatório de 180 páginas que recomenda a restituição permanente de cerca de 90.000 artefatos africanos tomados pela França por meio de “roubo, saque, espoliação, trapaça e consentimento forçado”. Macron indicou o economista senegalês Felwine Sarr e a historiadora de arte francesa Bénédicte Savoy para assessorar o processo. O relatório, que ficou conhecido como Savoy/Sarr, solicitou à França um inventário das obras africanas tomadas durante o período colonial do Mali, Benin, Nigéria, Senegal, Etiópia e Camarões. No entanto, o governo francês possuiria direito de contestar as escolhas feitas pelos governos africanos, obrigando-os a provar que as peças em disputa foram adquiridas de forma legítima. 

Em 2020, o Senado francês e a Assembleia Nacional aprovaram por unanimidade um projeto de lei que previa a restauração de 26 artefatos para a República do Benin, retirados do antigo reino do Daomé em 1892 durante o saque do Palácio de Abomey pelos franceses. Além disso, também está prevista a devolução definitiva ao Senegal de uma espada que teria pertencido a El Hadj Omar Saidou Tall (1797-1864), fundador do Império Toucouleur (região que atualmente corresponde a Guiné, Senegal e Mali). Até o momento, as peças seguem em posse do Musée du Quai Branly – Jacques Chirac e do Musée de l’Armée em Paris, respectivamente. A aprovação do projeto após sua primeira leitura foi retardada por um desacordo dos legisladores em relação a algumas disposições. O Senado francês incluía a criação de um Conselho Nacional que aconselharia sobre reclamações futuras recebidas por instituições francesas, mas a Assembleia Nacional posteriormente diluiu a disposição, adotando uma abordagem “caso a caso” que exigiria a aprovação individual do presidente. No entanto, o projeto contrasta muito da recomendação de Sarr e Savoy pelo estabelecimento de uma lei geral que garanta a “restituição de itens do patrimônio cultural com base na fundação de um acordo bilateral de cooperação cultural com os países anteriormente colonizados, protetorados ou territórios administrados sob o mandato francês” (SAVOY; SARR, 2018, p. 78).

O Museu Nacional de Culturas Mundiais da Holanda embarcou em um projeto de US$5,5 milhões para revisar toda a sua coleção, identificar itens saqueados e recomendar o que deveria acontecer com eles. Sob a narrativa de “reaver injustiças do passado”, um comitê de especialistas está guiando o governo holandês através de diretrizes que se aplicam a objetos sob custódia de museus e galerias estaduais cuja devolução seja formalmente solicitada por outro país. 

Em um movimento mais conciliador, o Ministério da Educação, Cultura e Ciência holandês afirmou que muitos objetos foram efetivamente roubados das ex-colônias por conta da discrepância de poder na era colonial.  No início de outubro de 2020, o Ministério da Cultura divulgou um relatório detalhado sobre saques coloniais, delineando a necessidade de reavaliar centenas de milhares de artefatos, enfocando três dos principais museus do país: o Museu Nacional van Wereldculturen, o Museu Bronbeek e o Rijksmuseum.  De forma semelhante à França, os objetos de ex-colônias holandesas serão “incondicionalmente” devolvidos se for possível estabelecer que estes foram roubados.

Em 2018, a Alemanha  devolveu alguns artefatos e vários restos mortais para a Namíbia. Um ano depois, em 2019, 16 secretarias da cultura estaduais da Alemanha, o Ministério das Relações Exteriores e associações que representam cidades e municípios concordaram com uma resolução reconhecendo a necessidade de um estudo mais aprofundado de objetos saqueados mantidos em museus nacionais. O acordo define que museus com coleções etnológicas produzam inventários desses objetos e os tornem publicamente disponíveis para facilitar qualquer reclamação.  

Em conjunto com museus, as autoridades da cultura buscam garantir que os artefatos roubados sejam devolvidos, mas assim como os outros países europeus, os fundos e promessas da Alemanha estão centrados na pesquisa e na comunicação posterior, ao invés de priorizar o retorno material permanente de artefatos. O Fórum Humboldt da Alemanha possui cerca de 75.000 artefatos, incluindo 10.000 objetos saqueados pelas tropas alemãs durante o levante Maji Maji contra o domínio colonial na atual Tanzânia.

Na Grã-Bretanha, o Museu Britânico guarda mais de 73.000 artefatos culturais roubados da África Subsaariana e está entre aqueles que recentemente empreenderam esforços na restituição parcial e voluntária. Dentre eles,  as antigas estátuas de Samarcanda foram devolvidas ao Uzbequistão em 2020, e mais de 5000 objetos culturais retornaram para o Iraque em uma das maiores repatriações até hoje.  A Nigéria tem pedido ao Reino Unido que devolva seus bronzes de Benin há décadas e, no final de 2018, os países fecharam um acordo pelo qual o Museu Britânico emprestaria alguns bronzes à Nigéria para o Museu Real que o país planeja inaugurar em 2021. Na prática, o Museu Britânico rejeitou os pedidos de restituição.

De uma forma geral, é possível observar que a disposição desses países em avaliar seus acervos e delimitar planos para restituir suas ex-colônias tem sido mais eficaz no papel do que na prática. O discurso de líderes como Macron, ou mesmo de representantes de ministérios da cultura europeus, acena para a importância dada a esse processo e a relevância histórica do mesmo, mas as devoluções efetivas são insuficientes.  A avaliação da “aquisição” desses artefatos é feita, na maioria dos casos, pelos próprios europeus – ou seja, o poder de controlar a narrativa ainda é exclusivo do colonizador: se eles comprovam que tal objeto foi “comprado” e não roubado, o mesmo permanecerá na Europa. 

A violência causada por mais essa tentativa de silenciamento, no entanto, não fica sem resposta. Em junho de 2020, por exemplo, o congolês Emery Mwazulu Diyabanza tentou, com outros quatro ativistas, recuperar do Museu do Quai Branly, em Paris, uma escultura de arte de origem africana. Líder do grupo pan-africano Unité, Dignité, Courage, que luta pela “libertação e transformação de África”, Diyabanza defende o direito às restituições dos países europeus pelos crimes cometidos contra os africanos durante a era colonial. O tribunal francês acabou condenando 3 dos ativistas por tentativa de roubo, mas eles ainda podem enfrentar outros julgamentos na Holanda, onde realizou protestos semelhantes. O caso de Diyabanza escancara o distanciamento do discurso de países europeus da verdadeira vontade de ‘devolver’ as obras de arte. Assim, mais parece que eles só realizam esse movimento a fim de (re)criar uma imagem menos negativa sobre o passado, uma que deve ser feita no tempo e nos termos deles.

Este é um protesto contra a era colonial. Estamos levando esta escultura para casa

– Emery Mwazulu Diyabanza

 Fonte: AP Photos/Lewis Joly

Outra resposta vem de países africanos que têm investido em espaços para abrigar as obras de arte e artefatos que atualmente seguem sob tutela de museus europeus.  Em 2018, o Museu das Civilizações Negras de Dakar, no Senegal, foi concluído com capacidade para 18 mil objetos, enquanto novos projetos também estão programados para o Javett Art Center da Universidade de Pretória, o Museu de História Nacional da República Democrática do Congo e o Centro JK Randle para a Cultura e História Yoruba em Lagos. A inauguração do Museu Real do Benin está prevista para 2021. 

Em paralelo, a impressão que fica é que aos países perpetradores da violência no continente africano simplesmente não importa lidar com o horror do qual essas obras são testemunhas. Décadas após os árduos processos de descolonização ocorridos pelo continente africano, o fantasma do colonialismo ainda tenta impedir que ex-colônias tomem total controle de suas próprias narrativas. Se não agora, quando então a Europa sairá desse estado de afasia colonial e enfrentará de fato as consequências desse passado que reverbera até o presente?

Referências

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VAN BEURDEN, J. Treasures in Trusted Hand Negotiating the future of colonial cultural objects. 2016. Tese (Doutorado em Humanidades) – Faculdade de Humanidades, Vrije Universiteit Amsterdam, Amsterdam.

Badra El Cheikh

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