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O MITO DO KOSOVO E OS 13 ANOS DA DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA

O post de hoje busca refletir sobre como os mitos de identidade nacional da Sérvia mantém a indefinição sobre a independência kosovar a partir de uma revisão histórica das relações Sérvia-Kosovo. Assim, entendemos a partir de Hobsbawn (1997) que a identidade sérvia foi fixada em território kosovar a partir de uma “tradição inventada”, isto é, há o estabelecimento de uma continuidade, consequentemente de uma unidade nacional, a partir de uma tradição originária de um acontecimento histórico marcante.

Desse modo, as relações entre as regiões onde são compreendidas a Sérvia e o Kosovo têm uma natureza extensa. No entanto, a partir do século XIV, foi gerado um mito nacional, que unifica discursivamente um grupo de pessoas na identidade sérvia. Conhecido como o Mito ou Culto do Kosovo, a história tem origem na Batalha do Kosovo em 1389, entre o exército liderado pelo príncipe sérvio, Lazar Hrebeljanović, e o Império Otomano. Mesmo que os sérvios tenham perdido a batalha e o inimigo tenha conquistado o território da futura Sérvia, esse momento é utilizado para simbolizar o “martírio da nação sérvia em defesa de sua honra e da cristandade contra turcos muçulmanos”. O mito reside em uma oferta feita à Hrebeljanović, na qual ele escolheria estabelecer um reino na terra ou no céu, tendo optado pela segunda opção e, consequentemente, perdido a guerra na Terra.

A Batalha do Kosovo (1389)

Fonte: Serbian Orthodox Diocese of Raska and Prizren

Dessa forma, a história dessa batalha tem sido passada entre gerações pela tradição oral, atrelada a um caráter místico de um reino perpétuo sérvio no céu. Além disso, o conflito aconteceu no Vidovdan ou dia de São Vito, 28 de junho no calendário gregoriano e 15 de junho no juliano, e desde então, tem sido a data para eventos fundacionais da identidade/nacionalidade sérvia. O Vidovdan estimula ainda mais misticismo, uma vez que nem todos esses episódios aconteceram propositalmente nessa data. Dentre os acontecimentos mais importantes para a história política da Sérvia, cabe citar:

  • A declaração de guerra sérvia ao Império Otomano em 1876;
  • A aliança secreta entre o Principado da Sérvia e o Império Austro-Húngaro em 1881;
  • O assassinato de Francisco Ferdinando em 1914 por Gavrilo Príncipe (início da Primeira Guerra Mundial),
  • A proclamação de uma nova constituição do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos pelo rei Alexander I (Constituição de Vidovdan) em 1921;
  • Ruptura final entre Stálin (U.R.S.S.) e Tito (Iugoslávia) em 1948;
  • Discurso de Gazimestan por Slobodan Milošević em 1989 (600 anos da Batalha do Kosovo) e
  • Deportação de Milošević para seu julgamento no Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia em 2001.

Comemorações do Vidovdan onde ocorreu a Batalha do Kosovo

Fonte: Every Day is a Special Day

Florian Bieber (2002) argumenta que o Vidovdan, além de ser uma data comemorativa para os sérvios, se tornou uma justificativa para reivindicação do território kosovar como parte da identidade sérvia independentemente da distribuição populacional atual. Mesmo que o mito tenha se originado há sete séculos, ele ainda é mobilizado como identidade sérvia nos dias de hoje.

Assim, destacamos que a região balcânica foi palco de diversas invasões do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa perspectiva, é comum entender a luta por poder na região nesse contexto dividida em três grandes grupos: os Ustaše (movimento fascista originário na Croácia), os Chetniks (monarquistas sérvios) e os Partisans (movimento comunista, contra nacionalismos) liderados por Josip Broz Tito. Durante o conflito, esses grupos se enfrentaram, provocando baixas significativas, o que futuramente seria utilizado para fomentar o ódio entre os nacionalismos e criar o cenário das guerras dos anos 1990. O fim da guerra, portanto, marcou o esfacelamento da monarquia estabelecida na região da Iugoslávia (Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, que na realidade priorizava os sérvios), tendo vencido o projeto de governo federativo partisans

Dessa forma, a época de Tito foi marcada por um governo que procurava diminuir a presença hegemônica sérvia, do fascismo e da influência soviética. Logo, a Iugoslávia representava um Estado com seis repúblicas representando os povos eslavos do Sul, sendo que o Kosovo e a Vojvodina (com população majoritariamente albanesa e húngara respectivamente) eram Províncias Socialistas Autônomas da Sérvia. Em 1968-69, no entanto, houve manifestações nas repúblicas, a fim de garantir maior qualidade de vida para a população. Em Belgrado, por exemplo, jovens invadiram as universidades, demandando que o governo diminuísse as disparidades econômicas entre as regiões. Já no Kosovo, a luta era por mais autonomia política, tentando desvincular-se da Sérvia como uma república iugoslava.

Protestos estudantis na Iugoslavia, 1968

Fonte: Museum of Yugoslavia

Com isso, Tito concedeu mais autonomia às repúblicas com emendas constitucionais e foi construída a Universidade de Priština (capital kosovar) com o ensino em língua albanesa em 1969. Ademais, a nova constituição de 1974 trazia ainda mais autonomia à província do Kosovo, permitindo ter não só a sua própria administração e assembleia, mas também uma substancial autonomia constitucional, legislativa e judicial. Entretanto, jamais foi concedida ao Kosovo sua independência da Sérvia. Essas mudanças geraram um sentimento negativo da população sérvia na região, uma vez que o governo regional passou a ser composto majoritariamente pela população albanesa. Segundo Catherine Baker (2015, p. 23), Tito conseguiu manter a Iugoslávia unida, mesmo com as concessões regionais. Sua morte em 4 de maio de 1980, contudo, marca o início da desintegração iugoslava.

Logo depois da morte de Tito começaram diversos protestos por conta da crise econômica, gerada pela manipulação do preço do petróleo na Guerra do Yom Kippur em 1973. Todavia, o Kosovo sofreu mais que outras regiões. Enquanto que o PIB per capita de toda a Iugoslávia era em torno de 90.000 dinares, o kosovar era menos de um terço. Igualmente, a taxa de desemprego no Kosovo beirava 40%, ao mesmo tempo que na Eslovênia era 1.6%. Nesse contexto, os protestos tinham duas principais reivindicações: o fim das desigualdades regionais e o status do Kosovo como uma república independente da Sérvia. Dessa forma, as manifestações tomaram conta do Kosovo (10.000 pessoas protestando em 6 cidades), levando as autoridades federais a declararem estado de emergência, o que acarretou no aumento da violência policial para a repressão do movimento. A principal consequência desse evento foram os expurgos do Partido Comunista do Kosovo (incluindo seu presidente) e da Universidade de Priština. Assim, 226 manifestantes, principalmente professores e estudantes da universidade, foram condenados a 15 anos de prisão em julgamentos semi-secretos. Além disso, entre 1981 e 1987, em torno de 30.000 sérvios e montenegrinos deixaram a região do Kosovo (BAKER, 2015).

Protestos de 1981

Fonte: Visit Kosovo

Dentre tantos outros motivos, pode-se afirmar que a morte de Tito, um líder carismático, e a má gestão da crescente crise econômica desencadearam a volta dos discursos nacionalistas na Iugoslávia. Desse modo, durante a década de 1980, observa-se ainda mais o ímpeto de conter a autonomia kosovar conquistada no governo Tito. Um dos principais momentos para a mobilização nacionalista sérvia foi o discurso de Gazimestan, proferido pelo então presidente da Sérvia, Slobodan Milošević, no aniversário de 600 anos da Batalha do Kosovo. Nesse momento, Milošević dá início a uma campanha para a diminuição da autonomia do Kosovo e da Vojvodina sobre a Sérvia. Além disso, Milošević se apropriou da data celebrada para criticar a liderança sérvia em 1389, afirmando que ela não era coesa e, por isso foi derrotada pelo Império Otomano. Assim, de acordo com Roberson (2002), Milošević se aproveitou do Vidovdan para celebrar a nova Constituição centralizadora e priorizar uma Sérvia unida.

Slobodan Milošević profere o discurso de Gazimestan, 1989

Fonte: Slobodan Milošević International Committee

Assim, entre junho de 1991 e abril de 1992, quatro repúblicas declararam independência (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina e Macedônia), desencadeando guerras na região balcânica. Vale destacar que a guerra na Bósnia foi a de maior importância política, tendo em vista sua população multiétnica (bosniaks, sérvios e croatas, principalmente) e os atos de limpeza étnica. Esse conflito teve fim com o Acordo de Dayton em 1995, quando a Sérvia e Montenegro formaram a República Federativa da Iugoslávia. Segundo Baker (2015), uma das deficiências de Dayton foi não esclarecer o status do Kosovo, o que acarretou na formação do Exército de Libertação do Kosovo (KLA) e em uma nova guerra na região. 

Dessa forma, em fevereiro de 1998, começou um conflito entre o KLA, depois apoiado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a  República Federativa da Iugoslávia. No entanto, vale mencionar que antes da guerra, houve esforços internacionais que tentaram diminuir as tensões na região, com um acordo político que incluísse o fim da repressão iugoslava e os atos terroristas albaneses-kosovares, um estatuto reforçado para o Kosovo com um maior grau de autonomia e autogestão do Kosovo durante um período transitório de 3 anos.

Assim, sem a legitimidade da comunidade internacional, a OTAN decidiu após um ano sem conclusão das hostilidades realizar uma campanha de bombardeios em 1999 a fim de expulsar as tropas sérvias, mesmo que nem todos os alvos atingidos fossem de caráter militar. Com o fim da guerra, instaura-se uma missão de paz Organização das Nações Unidas (ONU), a UNMIK, que ainda se encontra em operação, com um mandato para a facilitação do processo político para determinar o futuro estatuto do Kosovo.

Bombardeios da OTAN no Kosovo, 1999

Fonte: B92

Entretanto, frente a uma impaciência kosovar diante de uma passividade da UNMIK em promover a independência formal do Kosovo, no dia 17 de fevereiro de 2008, a Assembleia do Kosovo declarou unilateralmente sua independência da Sérvia por unanimidade de votos (a minoria sérvia boicotou a votação), afetando a política da região. A declaração de independência é atualmente reconhecida por 117 países (cabe destacar EUA, Reino Unido, os demais países do G7, Albânia, Macedônia, Croácia, Eslovênia, Bulgária e Montenegro), porém foi rejeitada pela Sérvia e seu maior aliado, a Rússia, o que impede sua entrada na Organização das Nações Unidas (ONU). Ademais, a posição da própria União Europeia (UE) é dividida, já que cinco países ainda não reconhecem a autonomia kosovar. O mais recente reconhecimento veio de Israel, em 2021, no entanto, só foi conquistado com a reciprocidade do governo kosovar e o reconhecimento de Jerusalém como a capital de Israel.

Desde 2008, vale pontuar que a UNMIK, com parcerias locais, contribuiu para a criação da base institucional democrática do Kosovo. Assim, a Constituição adotada em 2008 se preocupou em estimular a participação das minorias étnicas no Kosovo, não só a sérvia. Dos 120 assentos na assembleia kosovar, 10 eram destinados aos sérvios e outros 10 a outras minorias. Além disso, é necessária uma aprovação majoritária das duas classes de minorias para a aprovação de projetos considerados de “interesse vital”. Segundo Oisín Tansey (2009, p. 153-154), apesar de bons resultados no processo, a minoria sérvia (aproximadamente 5% da população) no Kosovo ainda é uma questão política a ser considerada, uma vez que se recusa a participar da vida política do novo regime por considerar ilegítima a declaração de independência. Assim, a autoridade kosovar é contestada nas cidades com maioria sérvia, onde foram instaladas estruturas governamentais próprias, financiadas por Belgrado, já que não está sendo reconhecido nem o governo do Kosovo nem a presença internacional. Dentre essas, cabe citar que a polícia, o sistema de saúde e educação são sérvios.

Desde a declaração, portanto, também ocorrem diversas tentativas de melhorar as relações entre Sérvia e Kosovo, principalmente porque ambas as entidades buscam se tornarem membros da União Europeia que, por sua vez, media essas negociações. Dessa forma, a UE já participou de mediações como o Acordo de Bruxelas (2013), que garantiu uma maior autonomia ao Kosovo, e a negociação iniciada em 2018 para uma possível “troca de terras”. Outro membro da comunidade internacional que realiza pressões para a normalização dessas relações é os Estados Unidos, que impulsionou um acordo comercial (Acordo de Washington) entre Sérvia e Kosovo em 2020.

No entanto, apesar de passos direcionados a uma maior autonomia e uma possível formalização da independência, as relações Sérvia-Kosovo ainda se encontram desestabilizadas. O próprio Acordo de Washington já se tornou motivo para troca de ameaças e farpas entre os governos em fevereiro de 2021. No entanto, o auge das provocações pode ser exemplificado com a acusação sérvia sobre o Kosovo de “querer guerra” depois de ter impedido a entrada de um trem com as cores nacionais da Sérvia e o slogan “Kosovo é Sérvia” em 20 línguas no dia 15 de janeiro de 2017. A utilização dessa decoração foi condenada pelo governo do Kosovo como um ato de “provocação”, uma vez que havia ícones religiosos ortodoxos sérvios de mosteiros no Kosovo nos vagões e funcionários estavam vestidos com as cores nacionais da Sérvia. Já o governo sérvio declara que foi apenas “uma exposição móvel apresentando nossa herança cultural”.

Sérvia envia trem com estampa “Kosovo é Sérvia [o Kosovo faz parte da Sérvia]” para território kosovar, 2017

Fonte: DW

Assim, o Debates faz a seguinte reflexão ao considerar as dificuldades ainda enfrentadas pelo Kosovo após 13 anos da declaração de independência: como questões de reconhecimento e reciprocidade ainda reiteram práticas de poder e dependência no sistema internacional?

Para a realização desse post foram utilizadas as seguintes referências:

BAKER, Catherine. The Yugoslav Wars of the 1990s. 1. Ed. Londres: Palgrave, 2015.

BIEBER, Florian. Nationalist Mobilization and Stories of Serb Suffering: The Kosovo Myth from 600th Anniversary to the Present. Rethinking History, 2002. pp. 95-110.

HOBSBAWN, E. Introdução: a Invenção das Tradições. In: HOBSBAWN, E; RANGER, T. (Orgs.). A Invenção das Tradições. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 9-23.

ROBERSON, A. B. The Role of Rhetoric in the Politicization of Efhnicity: Milošević and the Yugoslav Ethnopolitica Conflict. Treatises and Documents, Liubliana, 2002, n. 52, p. 268-284.

TANSEY, O. Kosovo: Independence and Tutelage. Journal of Democracy, 2009, p. 153-166.

 

Victoria Motta

Victoria Motta

Mestranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Bacharel em Relações Internacionais com Domínio Adicional em Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas pela mesma universidade. Atua como pesquisadora no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil e faz parte do projeto de extensão Debates Pós-Colonais e Decolonais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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