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DESMANTELANDO A EDUCAÇÃO: NEOLIBERALISMO E A PEDAGOGIA DECOLONIAL COMO PROJETO DE RESISTÊNCIA

O sistema educacional brasileiro, em especial o ensino público, têm sido alvo de inúmeras tentativas de desmantelamento e reformas com a finalidade de alinhar as políticas educacionais a valores neoliberais e ultraconservadores, promovendo a exclusão e violências de grupos específicos. Este trabalho tem como objetivo demonstrar como a lógica neoliberal se constitui como uma racionalidade e um projeto de vida que permeia e constitui as nossas instituições, em especial o sistema educacional brasileiro, a partir das contribuições de Christian Laval, Pierre Dardot, Marcio ‌Trevisol, Maria de Lourdes Almeida, Janete Palú e Oto João Petry.

Para ilustrar esse cenário, apresentarei o homeschooling e a “PEC das universidades”, como propostas de alteração legislativa e constitucional alinhadas à esta lógica, situando os caminhos que convergem para o desmantelamento da educação pública e propõem um mergulho ainda maior do nosso sistema educacional em um modelo educacional empresarial, conservador e fundamentalista. Por fim, trarei a pedagogia decolonial como um caminho possível de embate à esta lógica inserida nestes movimentos legislativos a partir do projeto e práxis da interculturalidade crítica proposta por Catherine Walsh.

Neoliberalismo e educação: instituições e sujeitos na lógica mercadológica e conservadora

Em seu livro “A escola não é uma empresa”, o sociólogo francês, Christian Laval, discute os caminhos pelos quais o neoliberalismo se constitui como uma racionalidade e como o sistema educacional está atravessado nesse sistema. Segundo Laval (2018), o neoliberalismo pode ser percebido como uma lógica política, normativa, conduzida por políticas e não somente pela expansão dos mercados. Nesse sentido, o neoliberalismo se estrutura e se organiza como uma forma de governo muito particular. A lógica neoliberal é construída a partir de experiências que foram possíveis em determinadas circunstâncias históricas e se molda como uma forma de racionalidade. Nos termos que trata Laval, o capitalismo “sai de si mesmo” e produz (ou é substituído?) por uma lógica política (e cultural) que retira do capitalismo sua forma de funcionamento “interno” para aplica-lo a outras esferas.

Trata-se de uma racionalidade capitalista que considera que as relações sociais e humanas devem ser regidas pelo princípio da concorrência, o que impõe a todos os indivíduos e instituições formas de concorrência. Essa concorrência é operacionalizada, se tornando a norma de conduta imposta às relações, práticas e instituições, que, por fim, revela um sujeito-empresa. Quer dizer, ocorre aqui uma inversão da lógica das noções de Estado e dos indivíduos, que passam a ser permeados por uma perspectiva empresarial.

É neste sentido que se produz transformações nas nossas instituições públicas, nas relações humanas e na própria subjetividade dos indivíduos: todos conectados à um modelo empresarial mediados pela concorrência (um modelo de empresas) (DARDOT & LAVAL, 2016). São lógicas globais que se apropriam de todas as instituições para leva-las a se transformarem a partir do seu interior. Assim, “uma política neoliberal é uma política que exige dos indivíduos que sejam competitivos e, para isso, precisam implantar dispositivos de competição”, até mesmo como alunes (LAVAL, 2018).

Para Laval (2019), o sistema educacional é um dos mais afetados por esta lógica, sendo essencial para sua manutenção. O autor compreende que estamos atravessando uma espécie de transformação capital dos sistemas de ensino que é a transformação neoliberal das escolas e do ensino superior. O modelo empresarial se aplica às instituições escolares, o que faz com que as escolas se tornem uma empresa. Segundo Laval, desde os primeiros anos escolares, é inserida uma ótica de autovalorização como indivíduos econômicos às pessoas escolarizadas. A escola fabrica hoje subjetividades neoliberais, o que faz com que a emancipação intelectual de alunes seja reduzida à produção de capital humano:

Se a escola é vista como uma empresa atuando em um mercado, é obrigatória a recomposição simbólica além dos círculos dos ideólogos liberais: tudo que diz respeito à escola pode ser parafraseado em linguagem comercial. A escola é obrigada a seguir uma lógica de marketing, é convidada a empregar técnicas mercadológicas para atrair a clientela, tem de inovar e esperar um “retorno de imagem” ou financeiro, deve se vender e se posicionar no mercado etc. A literatura sociológica, administrativa e pedagógica que alimenta a nova doxa fala cada vez mais naturalmente de “oferta” e “demanda” escolares. A instituição da escola, que até então era entendida como uma necessidade moral e política, tornou-se uma oferta interesseira da parte das organizações públicas ou privadas (LAVAL, 2019, p. 119).

Assim, é possível perceber que a educação como relação mercadológica é um modelo comum nos processos de privatização, em oposição à um modelo de educação como uma função pública e social. E isso não significa ignorar a parte característica do mercado inserido no ambiente escolar, já que os moldes neoliberais atravessam as nossas instituições. No entanto, a gratuidade do ensino escolar possui um caráter de democratização da cultura, da produção e reconhecimento de saberes, ao limitar o entremear do domínio privado ao domínio público, evitando uma maior “mercadorização da educação” (LAVAL, 2019, p. 125).

As noções trazidas por Laval são interessantes, porém, para pensarmos o contexto brasileiro, é preciso compreender como este movimento é operacionalizado, de mãos dadas, pelo neoconservadorismo e pelo modelo teológico cristão conservador. No campo político, estas influências podem ser percebidas, por exemplo, com o aumento de grupos conservadores e ultrareligiosos no legislativo (PALÚ & PETRY, 2020). Neste cenário, as intervenções políticas na saúde, na educação, cultura, meio ambiente e demais campos sociais, se desdobram a partir destes ideais.

Estes atores políticos, aliados aos valores neoconservadores, fundamentalistas cristãos e neoliberais, demonstram interesses em realizar uma reforma educacional a fim de fortalecer estes ideais: 

Entre as mudanças que podem ser associadas à tendência neoliberal e neoconservadora, no Brasil, destacamos a Emenda Constitucional No 95, de 15 de dezembro de 2016, a Reforma do Ensino Médio, a publicação da Base Nacional Comum Curricular, a Militarização das Escolas, o Movimento Escola sem Partido, a influência e a presença de instituições privadas no âmbito da educação pública em diferentes arranjos e combinações e a defesa da legalização do homeschooling (ensino domiciliar). Todas essas ofensivas foram reforçadas a partir de 2016 e podem levar a educação pública brasileira a um quadro de regressão, no que diz respeito ao acesso, à qualidade e, principalmente, à democratização da educação e da escola em todos os seus sentidos. Na sequência, analisaremos de forma breve cada uma delas (PALÚ & PETRY, 2020, p. 14). 

O cenário educacional passa a ser visto como um instrumento atrelado ao “interesse do capital mercadológico e à ideologia neoliberal conservadora”, ao mesmo tempo em que a educação pública passa a ser alvo de ataques desse mesmo modelo (PALÚ & PETRY, 2020, p. 8).

Esse movimento de minar toda a potência e os aparatos financeiros e administrativos da educação pública é uma estratégia desta mesma lógica de transformação no “sujeito empresarial”, orientando os comportamentos sociais a partir de uma ética empresarial, reduzindo as propostas pedagógicas e das áreas do saber, transformando a escola na própria empresa (TREVISOL & ALMEIDA, 2019). Isso também implica retirar a produção de memória e construções de subjetividades alheias à ideologia neoliberal.

A homeschooling e o pagamento de mensalidades nas universidades públicas: pelo desmonte da educação pública brasileira

Para exemplificar esse avanço neoliberal no cenário educacional, analisaremos algumas propostas de alternações no sistema educacional brasileiro: a educação domiciliar (homeschooling) e o pagamento de mensalidades nas universidades públicas. Apesar dos atuais reboliços causados pelos temas, eles são novidades no contexto parlamentar brasileiro.

Em maio deste ano foi aprovada na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 3.179 de 2012), de autoria do Dep. Lincoln Portela (Republicanos-MG), que regulamenta a educação domiciliar (homeschooling), alterando as diretrizes e bases da educação nacional e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para permitir o ensino domiciliar na educação básica, desde à educação infantil até o ensino médio.

E porque isso é uma preocupação? Caso a lei seja aprovada, os sistemas de ensino admitirão que a educação básica seja de responsabilidade domiciliar, caso assim os pais e responsáveis desejarem. No caso do Brasil, o homeschooling é defendido por instituições e lideranças apoiadas ao movimento neoconservador e ao fundamentalismo religioso, sendo uma das justificativas para sua implementação a de que o Estado não deve interferir nos valores e princípios adotados pela família (CECCHETTI & TEDESCO, 2020).

Em sentido similar, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 206 de 2019, de autoria do Dep. General Peternelli (PSL-SP), ganhou enorme destaque, pois propõe a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas. Esta proposta consiste na alteração da nossa Constituição Federal (CRFB/88), em especial, o dispositivo que determina que o ensino público deve ser gratuito. A justificativa principal desta proposta se dá no sentido de que, já que a maioria dos estudantes é oriundo de escolas privadas, os mesmos teriam condições de pagar mensalidade. Com o jargão “quem pode, paga, e quem não pode, não paga”, a proposta se dá no sentido de garantir a gratuidade àqueles que não têm condições econômicas e ao pagamento de um valor de 50% da média das universidades particulares a aqueles que têm condições econômicas.

Ao analisar esta proposta com os marcos teóricos apresentados, podemos perceber a relação mercadológica dada à educação. Ao mesmo tempo, a educação escolar, em especial a educação pública, é posta à prova e inserida em uma arena de batalha em que seus defensores compreendem que “a educação escolar não deve tratar de temas religiosos, políticos, sexuais e morais”, por ser esta uma obrigação do instituto familiar (CECCHETTI & TEDESCO, 2020, p. 4). Junto à movimentos como o da “ideologia de gênero” e a Escola sem Partido, a educação torna-se um campo de disputa ideológica, e a educação pública é protagonista de tentativas de desmantelamentos pelo neoconservadorismo, cooptados por uma ética empresarial, ante seu caráter ameaçador de socialização de estudantes mais expansiva, gratuita, inclusiva e laica. 

Mas qual é o próximo passo? O projeto de lei ainda não está em vigor, ou seja, ainda não é permitida a educação domiciliar no Brasil. Para que a projeto se torne lei, é necessário que ele seja aprovado no Senado Federal, local aonde a discussão acontece nos próximos meses. A proposta de emenda constitucional, por sua vez, depende ainda de votação, apesar de sua admissibilidade ter sido aprovada na Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania (CCJC) pelo relator Dep. Kim Kataguiri (UNIÃO-SP).

Devemos nos manter atentos. Não devemos subestimar os discursos por trás destas propostas, pois se articulam de maneira muito precisa, fazendo um uso distorcido de todas as deficiências da administração pública e da capacidade do setor público em realizar um projeto educacional efetivo. Precisamos trazer essas discussões para o campo crítico, apontando todas as suas ferramentas perniciosas e desfazendo todos os seus disfarces. Para tanto, propomos pensar alguns caminhos.

A pedagogia decolonial como projeto de resistência

Pensaremos o enfrentamento à lógica do modelo neoliberal no campo da educação a partir da resistência às estruturas epistêmicas da colonialidade e da possibilidade de construção de uma pedagogia decolonial. A ideia é articular a construção de um sistema educacional pedagógico alternativo à modernidade eurocêntrica, ao conservadorismo e à política neoliberal. 

Para isso, apresentamos a estratégia da interculturalidade crítica da autora Catherine Walsh como uma outra possibilidade de enquadramento, como um processo e um projeto político, ético e intelectual:

O conceito de interculturalidade, então, é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro – um pensamento crítico de/desde outro modo -, precisamente por três razões principais: primeiro porque está concebido e pensado desde a experiência vivida da colonialidade, ou seja, desde o movimento indígena; segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global. (WALSH, 2005, p. 25) [tradução minha].

A interculturalidade crítica se forja, portanto, da intervenção pela reinvenção da sociedade, reconhecendo a existência de um poder dominante. Têm como um de seus objetivos repensar as relações entre o “eu” e o “outro” como equitativas, ao contrário daquilo que impõe a lógica neoliberal. Assim, da inserção dessas noções, é capaz de reorganizar e pensar uma transformação das relações e estruturas institucionais, bem como promover um novo projeto de sociedade.

Segundo Walsh, a interculturalidade crítica parte do “problema do poder, de seu padrão de racialização e da diferença construída em função destes” (WALSH, 2012, p. 12, tradução minha). Não se trata de propor um caminho que se limite às esferas políticas, sociais e culturais, mas um que realize os cruzamentos necessários e promovidos pela exclusão, negação e subalternização ontológica e epistêmica de grupos e corpos.

Ao pensar o tema da educação a partir da interculturalidade crítica, a autora entende que é necessário visibilizar, enfrentar e transformar as instituições que “posicionam diferencialmente grupos, práticas e pensamentos dentro de uma ordem e lógica que, ao mesmo tempo e ainda, é racial, moderno-ocidental e colonial” (WALSH, 2012, p. 15, tradução minha).

A alteração nas leis e constituição federal para permitir o homeschooling e o pagamento das mensalidades na universidade pública são sintomas deste processo de diferenciação, racialização e exclusão. Quando dizemos que o Estado não é capaz de gerenciar o seu projeto pedagógico público e gratuito e que, consequentemente, o ambiente empresarial é capaz de fazê-lo, reforçamos os mesmos valores de mercantilização que colocam a educação a serviço do capital e do fundamentalismo religioso.  

Ao mesmo tempo, precisamos nos questionar porquê e para que estamos educando. A implementação de um sistema educacional pautado na interculturalidade, quando crítico, deve estar atento ao problema estrutural que constitui a diferença colonial e a desigualdade, através de uma pedagogia que construa uma humanidade questionadora. É nesse sentido que o projeto da interculturalidade é, necessariamente, um projeto decolonial, como uma lógica alternativa à “nova razão do mundo” neoliberal. Um processo de descolonização e interculturalização das instituições envolve, também, mudanças políticas e jurídicas no projeto educacional e pedagógico.

Ao situarmos as propostas de alteração de lei e da Constituição do sistema educacional brasileiro como parte do projeto de existência e de vida do projeto neoliberal, conservador e fundamentalista cristão, enxergamos os dispositivos da realidade colonial que operam nesta máquina. E, quando expomos esses mecanismos, podemos elaborar outras lógicas e debater propostas de desmantelamento para uma educação que opere a partir de uma construção pedagógica crítica, consciente, humana e expansiva.

“Rumo à novos desenhos históricos e horizontes de-coloniais”

(Catherine Walsh)

Para realizar este post, foram utilizadas as seguintes referências:

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Ebook. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

LAVAL, Christian. “Christian Laval: A racionalidade neoliberal” [dublado]. TV BOITEMPO. Youtube, 12 de novembro de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bumpBiaXw84>. Acesso em: 21 jun. 2022.

‌TREVISOL, Marcio Giusti; ALMEIDA, Maria de Lourdes Pinto de.  A incorporação da racionalidade neoliberal na educação e a organização escolar a partir da cultura empresarial. Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 12, n. 3, set./dez. 2019. Disponível em: <https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/reducacaoemancipacao/article/view/12409/6866>. Acesso em: 21 jun. 2022.

CECCHETTI, Elcio; TEDESCO, Anderson Luiz. Educação Básica em “xeque”: Homeschooling e fundamentalismo religioso em tempos de neoconservadorismo. Revista Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2014816, p. 1-17, 2020. Disponível em: <https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>. Acesso em: 21 jun. 2022.

WALSH, Catherine. (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, C. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005. p. 13-35.

WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y pedagogia de-colonial. Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas, v. 3, n. 6, p. 25-42, 2012.

PALÚ, Janete; PETRY, Oto João. Neoliberalismo, globalização e neoconservadorismo:  cenários e ofensivas contra a Educação Básica pública brasileira. Revista Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2015317, p. 1-21, 2020. Disponível em: <https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>. Acesso em: 21 jun. 2022.

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Maísa Pinheiro

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