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“CONTRATO SOCIAL” OU FICCIONAL? O LEGADO DA COLONIALIDADE NA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

Por Maísa Pinheiro e Victoria Motta

O Estado Moderno, calcado sobre violências de cunho racial, sexual e de gênero, é entendido como uma das instituições sociais mais importantes no contexto político da atualidade. Ele é uma das principais formas que os indivíduos se organizam socialmente para reivindicar direitos e liberdades, bem como decidir o rumo político de seus grupos. Não pertencer a um nenhum Estado (apátridas) ou estar “ilegalmente” em um território são problemáticas enfrentadas, por exemplo, por refugiados que fogem de uma situação de insegurança como um conflito armado. 

Mesmo assim, o vínculo com um Estado, uma cidadania em tempos modernos, não acarreta na certeza de que seus direitos serão assegurados e suas liberdades garantidas, como vemos em leis e práticas que segregam e controlam os corpos de pessoas racializadas, mulheres e com sexualidades consideradas “desviantes” da norma. Mas como chegamos a se organizar em Estados? Que “história” contamos para legitimar o Estado? Que silêncios, preconceitos e exclusões estão por trás dela? E quando é o próprio Estado que gera violência (em vez de nos garantir segurança e bem-estar)? O post de hoje busca refletir sobre essas perguntas.

O que é o Contrato Social e por que ele é problemático?

O contrato social é uma narrativa que busca apontar uma “origem” para a formação da sociedade civil e, consequentemente, justificar a organização social em torno do Estado Moderno. Entre os séculos XVI e XVIII, os chamados “contratualistas”, como Locke, Hobbes, Kant e Rousseau, foram filósofos políticos europeus que contribuíram para essa discussão, cada qual apresentando sua visão sobre essa “história”. Nós apontamos sua contribuição neste texto, por conta da importância que ela assume na criação de um imaginário de igualdade entre indivíduos e a sustentação do Estado Moderno, entretanto é possível encontrar nuances desse debate na filosofia grega.

Apesar de divergências, como o caráter da “natureza humana”, esses autores narram um momento fictício da história, o “estado de natureza”, para marcar um tempo histórico anterior à “sociedade civil”. Aqui, os indivíduos não estavam ligados a uma autoridade superior e poderiam viver em um mundo sem regras sociais restritivas. Mas, seja pela insegurança ou pelo desejo de garantir a propriedade privada, a história fala que essas pessoas voluntariamente abrem mão de parte dessa liberdade para delegar a um soberano a tarefa de garantir sua vida, liberdade e o cumprimento dos acordos. Nesse sentido, a passagem do “estado de natureza” para a “sociedade civil” é vista como uma decisão racional e proveitosa. 

Como já apontado o “estado de natureza” é considerado pelos próprios autores um imaginação sobre um passado longínquo, isto é, não há dados, nem comprovações de que, se esse estado realmente existiu, ele se deu nos termos descritos pelos filósofos. Isso nos leva a pensar que a grande base de todo esse pensamento, que fundamentalmente serve para justificar o governo estatal, não se sustenta. No entanto, a problemática se agrava ainda mais quando a ideia de “estado de natureza” como condição histórica concreta da Humanidade foi inspirado em relatos de viajantes europeus ao continente americano nos séculos XV e XVI. Beate Jahn (1999, p. 412), dentre vários autores, aponta que essas “histórias” devem ser entendidas como o produto de um determinado evento histórico e, portanto, já altamente carregadas de significados culturais, sociológicos e éticos específicos.

Para ela, esse (des)encontro desafiou a visão de mundo culturalmente específica dos espanhóis, levando-os a adotar a noção de “estado de natureza” para incorporar os ameríndios no seu entendimento sociopolítico. Essa “inclusão” gerou o Debate de Salamanca, em que a humanidade dos habitantes das Américas foi contestada baseando-se em princípios cristãos e do direito natural (baseado nos pressupostos da racionalidade humana, na justiça e na igualdade entre indivíduos). O resultado foi o estabelecimento da superioridade dos espanhóis frente aos ameríndios (estes não tinham cultura, ou tinha uma falsa-cultura) e o objetivo político prático de assimilar esses ameríndios à cultura espanhola já que não entendiam a “verdadeira” natureza do mundo (JAHN, 1999).

Isso, em seguida, se tornou a base ideológica para justificar moralmente (porque incentivos econômicos também existiam) a empreitada colonial europeia nos continentes americano, africano e asiático, que contou com a escravização de seus habitantes. Assim, a experiência europeia é universalizada e a diferença é temporalizada, ou seja, há uma naturalização de uma lógica temporal de evolução que coloca os ameríndios como “atrasados” e a “civilização” europeia, baseada no Estado, como único caminho a ser seguido (JAHN, 1999).

Para além da temporalização, vale também pensar nesse regime em termos espaciais, isto é, os diferentes parâmetros de relações interestatais que operavam entre países do Norte e entre Norte-Sul. Demarcado pelo Trópico de Câncer, essa divisão permitia que o Direito das Gentes, dotado de “regras de convivência” entre seus pares, fosse abandonado fora do contexto europeu, como na América ou em África (SANTOS FILHO, 2019). Nesse sentido, os países fora do escopo europeu foram vistos como “desocupados” (terra nullis) e a disputa europeia para a sua conquista foi positivada e estimulada. Mas que críticas pós-coloniais e decoloniais podem ser atribuídas à narrativa do contrato social?

Críticas ao Contrato Social: o Contrato Heterossexual

A construção de direitos foi materializada pelo contrato social e esconde uma ordem social criada pelas forças hegemônicas. Este pacto social coletivo não é resultado de um acordo de vontades individuais quando não há reciprocidade na sua constituição. Uma das referências nas discussões decoloniais sobre o tema é a antropóloga Ochy Curiel que, analisando o texto da Constituição Política Colombiana de 1991, demonstra que por meio do contrato social, se expressa e se legitima um discurso de poder que é fruto de negociações de quem detinha este poder. Ao mesmo tempo, como sendo o espaço em que se utiliza a lei e a escrita como meios e tecnologias de estabelecer o próprio poder e a hegemonia (CURIEL, 2019). 

A autora demonstra como a Constituição Política Colombiana de 1991 não obteve a participação de mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, povos originários, pessoas trabalhadoras, dentre outros, como corpo de representantes. Isto contraria a ideia de que se trata de um pacto social coletivo. Se o pacto social é produto dos grupos dominantes, pois estes são aqueles que estavam produzindo o contrato, então o contrato social é uma ficção política criada pelas forças hegemônicas em razão de privilégios, o que faz com que a autora denomine o contrato social de contrato heterossexual. 

Ao dar esse nome ao contrato, ela faz referência ao regime heterossexual como um regime político que opera para a dominação e a manutenção do poder, porque esse contrato não é elaborado expressamente. Aqui, as relações de poder operam pela exclusão de pessoas. Esta exclusão ativa de determinados grupos na formulação do contrato social implica, dentre inúmeras questões, reduzir as pessoas à condição de objeto do contrato, e não de sujeitas e sujeitos deste contrato.

Esta é uma das formas de perceber o racismo, o cisheteropatriarcado e o capitalismo como sistemas imbricados à colonialidade atuando para a sua auto-sustentação. As críticas de Curiel ao contrato heterossexual que foi a Constituição Política Colombiana de 1991 podem ser úteis ao analisarmos outros contratos, em especial os de direitos humanos internacionais, como é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

Anunciada no dia 26 de agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão trouxe um aparato de direitos individuais e coletivos, determinando-os como universais para todo homem e todo cidadão. Alguns grupos políticos compuseram a Assembleia Nacional Constituinte Francesa da época, com cerca de 1177 homens, tendo como um dos resultados a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Assim, a criação da Declaração e suas influências para a construção dos direitos humanos internacionais e alguns contrapontos envolvendo a universalidade dos direitos humanos são caros para vários movimentos. 

A título de exemplo, Olympe de Gouges propôs em 1791 uma Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã como resposta direta à Declaração do Homem, com o objetivo de igualar as mulheres à mesma condição de cidadã que o homem detinha na Declaração sendo construída (OLYMPE, 1791). Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia Nacional Constituinte. Então, Olympe destina a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, em carta, à Maria Antonieta e posteriormente é guilhotinada por seus “ideais contra revolucionários”. 

 Vemos que, ao longo do processo de construção dos direitos humanos, também há um processo de manutenção de pilares sociais estruturados pelo privilégio para a dominação. Quando Curiel questiona as estruturas que possibilitaram a formação do contrato heterossexual, é disto (e muito mais) que estamos tratando.  

O que temos, tantas vezes, é um mundo idealizado pelas declarações de direitos humanos. É preciso pensar em reorientações que partam do mundo que nós herdamos: um mundo construído através da violência e da escravidão de corpos colonizados. Os direitos humanos são um campo de disputa de todos os lados, sendo um dos caminhos promover análises que rompam com uma ideia de direitos humanos que reproduzem uma falsa proteção a estes corpos, mas que auxiliem na manutenção de poder de grupos dominantes. 

Ser sujeito em relação ao contrato social implica, também, ser sujeito de direitos. E diante de uma narrativa universalizante e universalizadora, ser sujeito de direitos, conforme a professora e pesquisadora Thula Pires, “é a afirmação de uma pretendida uniformidade, forjada pela exclusão material, subjetiva e epistêmica dos povos subalternizados” (PIRES, 2019, p. 3). Nesse sentido, questiona:

A régua de proteção que determina o padrão a partir da qual bens como a liberdade passam a ser pensados deriva da afirmação da supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista, cristã e inacessível a todos os corpos, bem como do resultado dos processos de assimilação e aculturação violentos empreendidos pelo colonialismo (PIRES, 2019, p. 3).

O processo de formação dos direitos humanos perpassa a política, o direito, e suas instituições. No Brasil, a produção normativa de direitos possui uma afirmação da liberdade lado-a-lado à perpetuação do sistema colonial-escravista. Por exemplo, o mês de agosto deste ano marca 230 anos do início da Revolução do Haiti. Ao reconhecer a Revolução Francesa como marco de um processo constituinte relevante e ignorar a importância da Revolução Haitana de 1791 no nosso contexto, fortalecemos os processos de manutenção de um modelo de colonialidade jurídica e política, em que grupos escravizados foram extirpados de dignidade e ausentes na representação político-institucional (PIRES, 2019). 

É nesse sentido que algumas reorientações, para nós mesmas, se fazem necessárias. Uma das possibilidades de se reposicionar o discurso dos direitos humanos é através da mobilização do pensamento de Lélia Gonzalez, diante da categoria de resistência do político-cultural da americanidade, que implica incorporar o nosso processo histórico de intensa dinâmica cultural e ultrapassar os limites territoriais, linguísticos e ideológicos da formação do Brasil e da América (GONZALEZ, 2018, p. 329), ou seja, tomar a experiência e a produção acadêmica de pessoas africanas em diáspora na Améfrica Ladina para compreender os processos de violência e violação de direitos para construir direitos humanos a partir da zona do não-ser, isto é, a proposta conceitual de Fanon (1968; 2008) para pensar o humano (zona do ser) e o não-humano (zona do não ser), sendo esta última habitada pela pessoa negra em função de padrões de humanidade impostas pela colonialidade.

As críticas pós-coloniais e decoloniais são, neste sentido, propostas de reorientações epistêmicas. Pensemos em como abandonar a crença na universalidade hegemonicamente forjada como consciência, que pretende uma proteção ilusória e a-histórica. Pensemos em posicionar as estruturas de dominação de matriz colonial como um projeto político específico. Pensemos em reorientações pela memória, pelas experiências localizadas. Como afirma Lélia Gonzalez, a “consciência exclui o que a memória inclui” (GONZALEZ, 2018, p. 194).

Para este post foram utilizadas as seguintes referências:

CURIEL, Ochy. La nación heterosexual: análisis del discurso jurídico y el régimen heterossexual desde la antropologia de la dominación. – Ed. Brecha Lésbica y en la frontera; Bogotá: Colômbia, 2013. 

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Diáspora Africana, 2018.

GOUGES, Olympe De. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. 1791. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html>. Acesso em: 23 ago. 2021. 

JAHN, Beate. IR and the State of Nature: The Cultural Origins of a Ruling Ideology. Review of International Studies, v. 25, n. 3, p. 411–434, 1999.

PIRES, Thula. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. Latin American Studies Association, v. 50, n. 3, p. 69-74, 2019.

SANTOS FILHO, Onofre dos. Ultra Aequinoxialem Non Peccari: anarquia, estado de natureza e a construção da ordem político-espacial. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 8, n. 15, pp. 486-518, 2019.

Maísa Sampietro

Maísa Pinheiro

 Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ (NEPP-DH). Advogada, professora e pesquisadora. Participante do projeto de extensão Debates Pós-Colonais e Decolonais da UFRJ.

Currículo Lattes

Victoria Motta

Victoria Motta

Mestranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Diretora de Ensino e Pesquisa do Debates Pós-Colonais e Decolonais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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